terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Como a Veja alivia sua culpa

I.

O capeta em ação

Essa é mais antiga, sexting já não é mais novidade pra ninguém, mas é sempre engraçado ver a Veja falando sobre sexo:


Primeiro, o óbvio: eles restringem a discussão aos adolescentes, dessa forma quem lê a Veja já pode começar com o bom e velho "esses adolescentes de hoje..." Se você acha que sua avó não fazia putaria quando tinha 15 anos, tá na hora de você embebedar ela e pedir pra ela relembrar dos bons tempos. Outro resultado é que a mulher de 35 anos que faz a mesma merda que os adolescentes não se sente incluída na discussão, deixando a culpa que ela sente por sentir prazer recalcada no inconsciente. Se essa culpa vem pro consciente você percebe facilmente que ela é uma ferramenta usada pra te manter escravizado.

Não deveria ser necessário, mas devo alertar que estudos de universidade tendem a seguir uma (i)lógica generalizante (é claro que só de ver que o artigo todo é baseado num estudo nos Estados Unidos dá vontade de arremessar o laptop pela janela, mas aí eu lembro que o laptop também serve pra ver pornô, então eu venho falar palavrão num blog anônimo mesmo). É a mesma lógica deturpada dos psicólogos evolucionários: vamos pegar um estudo com 50 alunos de uma universidade e generalizar para toda a raça humana. Se alguém te fala "você pensa assim", tome cuidado, tome muito cuidado.

Mas de certa forma, o estudo acaba que se aplica à família do leitor da Veja. Eles podem não ser americanos (se você me corrigir com "estadunidense", eu vou envenenar sua pasta de dente), mas com certeza eles acham que são. O leitor da Carta Capital, por outro lado, que tá lendo a Veja pra se achar superior - convenhamos, a Veja é um alvo fácil - vai ver um motivo pra fazer chacota dos americanos. Chamar o outro de pervertido é fácil, quero ver quem vai ter coragem de olhar pra própria perversão.


II.

A seguir, uma lista de conclusões às quais os pesquisadores chegaram. Eu lembro aqui que esses caras receberam milhares, senão milhões, de dólares pra falar essas merdas, e esse blog é de graça.

  • "A principal [pista] é que o sexting tem um vínculo com a prática 'real' do sexo."
  • "Ainda não sabemos se é o sexting que leva ao sexo ou vice-versa, mas a prática de compartilhar essas imagens íntimas parece ser um bom indício de comportamento sexual."

  • "Se um adolescente está enviando SMS com fotos ousadas, provavelmente já está fazendo sexo."

  • "Normalmente, o sexting é direcionado a uma pessoa específica, com quem o adolescente já namora – ou gostaria de namorar."


Pressupõe-se que, se é preciso de um time de doutores pra explicar isso, o público-alvo dessa pesquisa nunca foi adolescente. E os risos não param aí: o líder da pesquisa (afinal, quem melhor do que um velho pra entender a sexualidade de um adolescente) nos explica que o fenômeno é mais comum com celulares porque é quase instantâneo, enquanto que ao enviar um e-mail com as fotos anexadas o adolescente tem mais tempo para refletir sobre o que faz. Temos então um velho, que deve escrever e-mail que nem o pai dele escrevia carta, que claramente não tem ideia que adolescente só usa e-mail pra se registrar no Facebook.


III.

O primeiro sext

Voltemos uns 6 mil(hões) de anos, pro Éden. Eva come o fruto proibido após ouvir os tentadores sussurros da cobra. Na verdade a gente não voltou no tempo porra nenhuma, a Bíblia não é um documento histórico, é um manual de psicologia (ocidental). A história do pecado original descreve a origem do sentimento de culpa que é responsável por (quase) todas as mazelas da sociedade - e paradoxalmente pelo seu progresso também, ordo ad chao* e tudo mais.

A questão é que o desejo pode ser reprimido, mas ele não pode ser apagado. Ou seja, os arcontes** te convenceram que o prazer é algo do qual devemos nos sentir culpados, assim a nossa libido deixa de ser aplicada ao nosso próprio corpo ou mente, ou aos nossos relacionamentos, e são direcionados ao interesses deles. É por isso que você trabalha de graça até maio.

Como a culpa não é um sentimento nem um pouco legal, a gente tende a projetar ela. Portanto, Adão diz que a culpa foi da Eva, e Eva diz que a culpa foi da cobra (do pênis), e assim ninguém olha pra própria culpa pra ver como ela é idiota. Quem é, afinal, esse Deus que diz que "comer o fruto da árvore do conhecimento" é motivo pra sentir culpa? E não é engraçado que esse fruto do conhecimento é justamente o gozo?

E o que isso tem a ver com o sexting? A jornalista (e eu uso esse termo com muita relutância) da Veja é a Eva botando jogando a culpa que ela sente na cobra, no caso o menino que foi preso. O cara que tá lendo esse artigo porque não só ele alivia essa maldita culpa ("não sou eu que tou sentindo tesão, é o adolescente da matéria") como também acaba "explicando" o sexting que a filha dele faz como sendo resultado de alguma tendência social além de seu controle, ao invés de como resultado de sua incompetência como pai.


IV.

Lembra que que aconteceu depois que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso? Eles tiveram dois filhos, que herdaram o pecado original, e um deles acabou matando o próprio irmão. Em outras palavras, mais uma vez, é impossível eliminar a libido, apenas redirecioná-la. De fato, é um imperativo natural que a libido seja desviada, pois o primeiro desejo é sempre pela mãe (endogamia), e a seleção natural favorece o desejo pelo Outro (exogamia). Só que a ideia de que o prazer é algo de errado faz com que neguemos até o Outro, e esses impulsos se tornam externamente criativos ou destrutivos.

A negação da sexualidade dos adolescentes (e das crianças) serve uma função dupla: ela não só garante uma fonte infindável de energia barata como também nos fornece um alvo onde podemos projetar o desejo que sentimos dentro de nós e que queremos eliminar. Só que essa sexualidade sempre existirá, e se os pais não permitem que ela seja expressada naturalmente, ela irá se transformar em comportamentos imbecis como o sexting e o alcoolismo.

Portanto, quem é responsável pelo sexting não é o BBB nem o GTA nem o beijo gay do Félix, é o próprio leitor da Veja. Fingir que o sexo não existe nunca é uma boa solução: quanto mais você tenta esmagar o sexo no seu punho, mais ele vaza por entre seus dedos. Se você quer que sua filha pare de fazer sexting, prepara um jantar romântico pra ela e pro namorado, dá uma camisinha pra ela, e sai fora de casa.


V.

Não esqueça de dar a descarga

Nossa querida "jornalista" cita dois casos relacionados, como se dois exemplos isolados revelassem qualquer coisa. No primeiro caso, uma jovem americana se matou após seu ex espalhar as fotos nuas dela pela escola, só que ninguém vai prender os pais por homicídio culposo, porque puta que pariu, pode ter certeza que a culpa é deles muito mais do que do namorado. Ela só se matou porque eles deixaram ela acreditar que o corpo dela era motivo pra sentir vergonha. Enquanto isso, a mais recente "piranha" do BBB ganha milhões pra posar nua pra Playboy.

No outro caso, dessa vez no Brasil (só pra garantir que você não ache que é só coisa de americano), um menino de 18 anos foi preso por divulgar fotos que a namorada de 14 anos havia enviado pra ele. Eu não vou nem entrar na questão do bullying, eu já falei sobre isso, basta dizer que o coitado é claramente um pária, um alvo indefeso sobre o qual todos irão jogar suas angústias. Ele foi preso pra que o leitor da Veja possa projetar o desejo recalcado que ele sente pela amiga da filha sobre o jovem - dessa forma, ele sente alívio ao ver o menino ser preso, pois está simbolicamente punindo um aspecto de si do qual tem vergonha.

"Mas então você tá falando que é de boa o cara sentir tesão pela amiga da filha?" É claro que é de boa. O problema é se ele agir sobre esse tesão. Se ele fizer isso, eu vou o primeiro da fila no apedrejamento. No entanto, o mero fato de sentir desejo é algo que está completamente fora do alcance do controle consciente. Se você não acredita em mim, eu vou mandar a Paola Oliveira fazer um strip na sua frente e você tá proibido de ficar de pau duro. Sim, eu sei que a Paola não tem 14 anos, mas se eu falar de uma menina de 14 anos fazendo strip, você vai parar de prestar atenção no que eu tou falando. Viu?




* se você não sabe o que quer dizer, não espere que eu te dê a tradução, porra, aprende a se virar e procurar as coisas no Google - você que aprende, não é o outro que te ensina

** "arconte", ou agente do demiurgo (mais uma vez, usa a merda do Google) é um termo geral que descreve aqueles que não sentem culpa e cujo objetivo é hierarquizar a sociedade e se colocar no topo, que seja como CEO, presidente, bispo, estrela pop, etc.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Rosa é para meninos: o marketing e a dissonância cognitiva

I.

O He-Man usava rosa, fica a dica

É de praxe aqui no Brasil, assim como em grande parte do mundo ocidental, que se dê roupas e brinquedos azuis para os meninos e rosas para as meninas. Você já parou pra se perguntar por quê? Não, para, não existe essa merda de "acaso", isso é só um mecanismo de defesa usado pela nossa psiquê devido à nossa incapacidade cognitiva de processar todas as informações que recebemos de nosso mundo caótico. Tem toda a questão de que o fato de distinguir entre os gêneros nas roupinhas reforça os papeis de gênero, etc, mas eu deixo esse assunto pras feministas.

O que interessa aqui é que isso existe porque, essencialmente, faz você consumir mais. Se você partir desse princípio de que toda ação de uma empresa, assim como a de um ser humano, é realizada para o benefício próprio, você vai ver como os filhos da puta te sacaneiam. A diferença entre uma empresa e um ser humano é que um ser humano é dotado de alma, moralidade, espiritualidade, enquanto que a única coisa que interessa à empresa é o dinheiro.

Mas enfim, como então que atribuir azul para os meninos faz você comprar mais? Dá uma olhada rápida na produção cultural e artesanal das diversas culturas ao redor do mundo, e rapidamente fica claro que a cor vermelha está associada ao masculino/positivo e a azul ao feminino/negativo. É só ver a ilustração de um ímã, porra. Vermelho é a cor da ação, do fogo, do excitamento; azul é a cor da reação, da água, da passividade, do resfriamento. Se você vai a um lugar quente, fica vermelho; se vai a um lugar frio, fica azul. Portanto, como essa associação tá gravada muito profundamente na nossa psiquê, nossa tendência natural é de associar os meninos ao vermelho. O que ocorre então quando vestimos nossos meninos de azul?


II.

É aí que entra a dissonância cognitiva. Ela é definida pela existência de sentimentos ou pensamentos paradoxais ou contraditórios em relação a um objeto. Ela ocorre, por exemplo, quando você come um Big Mac mesmo sabendo que é uma porcaria. O resultado da dissonância cognitiva é um aumento da insegurança e dos níveis de excitação. Nossas defesas se armam, ou seja, é algo do tipo "alguma coisa tá errada, Bob, saca teu revólver". Ficamos mais em alerta, o sangue flui para as extremidades.

E isso, é claro, nos torna mais propícios a consumir. "Hmm, não sei qual dos dois é melhor, acho que vou levar os dois". Comprar alguma coisa é que nem gozar, sabe aquela sensação de abrir a embalagem de um produto que você queria muito? Hmm, agora troca 'produto' por 'genital' e você vai começar a entender. Lembrando que amor e ódio são apenas as duas facetas da mesma moeda da libido, não há exemplo melhor disso que a carnificina que é o Black Friday (em breve, num shopping na sua cidade também!).

Haja fome

O Black Friday é o dia que segue o Dia de Ação de Graças, sempre comemorado numa quinta-feira. À exceção talvez do Natal, esse é o feriado que é mais associado com estar em família. No entanto, os americanos, de maneira geral, assim como os brasileiros estão se tornando, são muito desconexos de suas famílias. Eles são muito castrados (a maioria dos homens nos EUA é circuncidada, por exemplo, as mães cortam a amamentação cedo, etc) e portanto não criam laços familiares fortes. Quando chega um dia que remete à família, a dissonância cognitiva aumenta, e consumir alivia a tensão. O Black Friday se torna cada vez mais uma desculpa pra transferir todo o ódio que você tem pela sua família.


III.

Já deu vontade de comprar um Ray-Ban?

Voltando então para as roupinhas. As roupas de bebês sempre foram, de maneira geral, brancas, ou de uma cor neutral. De qualquer jeito, não havia distinção entre os sexos para as roupinhas. No final do século XIX, com a máquina capitalista se difundindo cada vez mais, começaram a fazer roupas separadas para meninos e meninas, pois assim os pais precisariam comprar todo um novo conjunto de roupas se o Juninho fosse ganhar uma irmã.

E veja bem: a tendência inicial foi atribuir as cores naturalmente. Nos anos 20, as grandes lojas recomendavam rosa para meninos e azul para meninas (rosa e não vermelho porque o vermelho pode ser agressivo/sexual demais, o que incomoda as pessoas de bons costumes ao ser associado a bebês). No entanto, a coisa se inverteu nos anos 40. Desde então, ficou essa associação azul-menino e rosa-menina. "Mas eu comprei roupinhas amarelas pro meu bebê!" E aí você vai pra casa toda orgulhosa por combater os estereótipos de gênero, mas se esquece que a palavra-chave da frase é 'comprei' - a C&A tá pouco se fudendo se você compra roupa amarela ou azul ou preta, contato que você compre.

Comprar uma roupinha azul pro seu filho causa, então, uma dissonância cognitiva em você. O "menino = azul" entra em choque com o "menino = vermelho" que foi implantado na sua psiquê milhares de anos atrás. Aí seu instinto é de procurar seu marido ou sua mãe (relaxa ae, pode voltar pra Marcha das Vadias, os homens também se sentem inseguros, todo mundo quer o colo de mamãe e a proteção do papai), só que seu marido tá comendo a secretária e sua mãe mora longe, resultado, um urso de pelúcia azul pro seu filho. Tá, não tem nada de moralmente errado com isso, só não vai bater nele quando ele começar a se roçar contra o ursinho, pelamordedeus.

Mas não caia na armadilha de achar que toda essa história de cores vai fazer alguma diferença. Pouco importa se você compra roupa azul ou roupa rosa, o que interessa é que você tá comprando, você ainda tá plugado na Matrix. O importante aqui é que você perceba que esses filhos da puta fazem isso não é só com as roupas não, é com tudo. O jogo deles é fazer você se sentir uma bosta pra continuar comprando e continuar seguindo as regras (que te fodem, aliás). Você compra roupa azul pro seu filho pelo mesmo motivo que você compra o creme anti-rugas da Avon: pra tentar satisfazer a grande mamãe-sociedade, que te alimenta de imagens inatingíveis. Eles nos dizem que ruga é feio, e a gente acredita, e se sente inseguro quando envelhece, e compra...ah, você entendeu.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...