quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Peludo? Eca. Incompetente na cozinha? Rawr!

I.

Rá, fiz você olhar, agora lê!
Oh céus, mais uma controvérsia: dessa vez tão processando a Gillette por discriminação contra homens peludos, devido a uma campanha publicitária que caracterizava homens peludos como nojentos ou sei lá que. Hmm, tá, e por que ninguém processa as propagandas de produto de limpeza por caracterizar os homens como incompetentes e incapazes? O que acontece é que esse caso tem credibilidade com o público porque eles criaram a controvérsia - no caso dos produtos de limpeza, não há controvérsia implícita, ou seja, ninguém questiona nada.

E o pior é que retratar os homens como idiotas é complicado porque os homens realmente acabam saindo prejudicados na parada - essa história de peito raspado, no final das contas, não afeta ninguém. Seria fácil fazer a mesma campanha com a mensagem inversa: é só deixar implícito que homem de peito raspado é boiola e criar um hashtag tipo #homemdeverdade. A questão é que pra deixar o peito peludo não precisa comprar nada.


II.

Se você acha que o mecanismo da propaganda é que o cara vai sair correndo pra farmácia querendo raspar o peito e vai comprar Gillette, então com certeza a propaganda vai funcionar em você, porque você acha que não vai ser afetado pela propaganda. Veja bem, essa campanha é muito mais pras mulheres que pros homens. Muito provavelmente, se o cara já tem o peito peludo, ele não vai querer raspar arbitrariamente. Ele pode até ver a propaganda, mas ele sabe que não é ter o peito raspado ou não que vai mudar o quanto ele pega no Carnaval. Se ele achasse que fizesse diferença, já tinha raspado. Agora, se tiver uma outra motivação...

Imagine a situação: a Fulaninha vê a propaganda. Como ela sabe que é pra homem, ela acredita que a propaganda não é pra ela (dica: se você tá vendo, é pra você), então passa tudo batido. No entanto, o que ficou registrado com ela, ou seja, o que é implícito na propaganda, é que peito raspado é o novo masculino. Tempos depois, ela vai começar a fazer pressão no namorado, sobretudo depois que as amigas delas zombarem o peito peludo do Fulaninho. Resultado: claro que ele acaba cedendo e compra...uma G/gilllette (se você é marketeiro e consegue fazer que o nome da sua marca vire substantivo comum, parabéns, você zerou o jogo).

Em outras palavras, o marketing funciona tão bem porque as pessoas acham ou que o marketing não é visado pra elas ou que elas são imunes ao marketing. Infelizmente, nenhum indivíduo pode ser. O marketing das grandes empresas não funciona a nível individual, mas a nível social. O marketing de verdade da campanha da Gillette é fazer com que as pessoas acreditem que masculino é raspar o peito, é "pegar todas", é encher o cu de cana (a AmBev agradece). Eu espero que fique bem claro que, enquanto você só questionar o que a autoridade te disser pra questionar, você vai continuar à mercê dos departamentos de marketing, provavelmente americanos pra piorar. O verdadeiro escravo é aquele que não sabe que é escravo.

E se você ainda não acredita, olha o que disse a Gillette: "a campanha “baseia-se em um vídeo engraçado e irreverente focando na preferência das mulheres por homens lisinhos, sempre respeitando nossos consumidores”.


III.

Você pega aqui, eu pego ali...

Repare também que o mesmo mecanismo que se aplicava pro caso do Silas Malafaia também se aplica aqui. A propaganda reforça a identidade tanto de quem raspa o peito quanto de quem não raspa. O cara que raspa vai se achar o gostosão da balada, enquanto o cara peludo diz que não raspa porque não é gay. Acontece que os públicos-alvo são diferente. O cara que raspa o peito quer as piriguetes do carnaval, enquanto o peludo quer as minas indie/hipster/cult bacaninha. No final das contas, os dois saem ganhando com a propaganda, por isso ninguém pára pra pensar.

"Críticas à campanha foram publicadas na própria página da Gillette no Facebook. “A maior palhaçada que eu já vi na minha vida! Em pleno século XXI, me aparece uma marca tentando impor um padrão estético”, escreveu o internauta Italo Bacci. “Ô Gillette, eu gosto de homem PE-LU-DO!”, protestou a consumidora Cristiane Souza."

Ítalo: uma marca É uma imposição de um padrão estético. A única coisa que interessa pras empresas é impor um padrão estético. Marketing funciona a base de persuação, não de convicção. Cristiane: ponto pro barbudo que te pegou depois dessa.

Mas teve também que curtiu. "Que legal! Já imaginaram as mulheres peludas? Direitos iguais? Por que o homem não pode depilar? Acho que todos já assistiram filmes das décadas de 70-80-90. Viram cenas de nudez? A mulher tinha mais pelos pubianos que o necessário. Hoje 99,9% usam a depilação em todo o corpo", escreveu J Icassati Icassati.

Mais que o necessário? Cara, não existe uma "quantidade necessária" de pêlos pubianos. Alguém já explicou que essa história das mulheres rasparem os pêlos pubianos começou com um grupo de irmãs brasileiras? Chama "Brazilian wax". Taí uma boa pra aula de marketing. Ah, e outra coisa: devo admitir que não foi científica, mas minha pesquisa pessoal revelou que esse número de 99,9% não bate nem um pouco. Pelo menos agora ele pode usar os pêlos da mina como desculpa pra quando ele brochar: "parada nojenta, sifudê".


IV.

Outro ponto que vale ressaltar. Esse aqui é de um comentário no artigo: "Isso não existe preconceito contra pessoas peludas , pelos é uma coisa que dá pra se tirar , isso é só desculpa pra ganha um dinheirinho em cima do processo". Eu aposto meu ovo esquerdo que você nunca mais vai ouvir falar desse processo. Sabe por quê? Há duas possibilidades em relação a quem iniciou o processo: ou gente doida mesmo (você acha que algum juiz o que seja acreditaria que isso é discriminação mesmo? Júri? Cara, isso não é Law & Order), ou funcionários da própria Gillette.

"Ué, por que que a Gillette se processaria?" Pra que você estivesse aqui conversando comigo sobre o processo, depois de ler o artigo no G1. Isso é que é o marketing de verdade. O G1 não fica postando essas coisas de graça. Por que falar dessa propaganda e não da outra? Porque teve processo. Por que teve proceso? A-ha...

Ah, e isso tudo sem contar as feministas que vão ficar falando no Facebook que mulher já tem que se submeter a isso por conta de machismo, mais uma vez divulgando a marca de graça. Claro que a nossa sociedade é machista (não por muito tempo), mas vale lembrar que escravidão requer consentimento.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Na terra dos cegos

I.

"Me bate que eu gosto!"

Recentemente tenho visto muito no Facebook as pessoas postando sobre o Silas Malafaia e sua coorte de lacaios e prestidigitadores. Quer dizer, já faz tempo isso, mas teve um pico esses tempos. O que você provavelmente não percebeu até agora é que é exatamente isso que eles querem que você faça. Não acho que conscientemente, mas a consciência não tem muito espaço no nosso mundo pós-moderno (pós-consciência?)

Tudo que vou descrever são mecanismos inconscientes. Com certeza há um punhado de cretinos que fazem isso deliberadamente, mas de que adianta criticar uma pessoa que não tem moralidade? O que acontece nessa charada é você e o Silas são dois dos participantes no Jogo da Identidade, em que um reforça a identidade do outro, e assim perpetuam o status quo - todo mundo ganha e o espírito humano perde.

O vídeo abaixo, que tem circulado bastante, é um exemplo disso. Esse blogueiro preocupado (com o quê?) explica como a genética desprova os comentários de nosso querido pastor no programa da Marília Gabriela (e repare bem, não é porque você não assistiu que essa entrevista não foi feita pra você), reforçado pelo eco interminável de comentários inanes. A ciência mais uma vez vindo à defesa! Mas se o argumento dos religiosos é de uma influência sobrenatural, você acha que é a ciência natural que vai convencer eles?


Veja como ele começa o vídeo: "Oi Silas Malafaia, tudo bem?" Perae, quê? Você acha que o Silas vai ver esse vídeo? No máximo ele vai usar isso no próximo sermão como prova da influência do demônio ou qualquer coisa do tipo. O homem (desculpa, "ser humano") que traz a espada da racionalidade prum duelo contra a pistola da irracionalidade não vai se dar muito bem.


II.

Uns comentários aleatórios no vídeo:

"A entrevista do silas malafaia é triste. Cheia de falácias e ad homines, que parecem convincentes porque ele grita, e grita e grita. Aí os crentes, por acharem que ele acabou com a mulher, vão ecoar toda a ignorância que esse bispo vomitou o programa inteiro, "glória, DEUS. O bispo é um intelectual, acabou com a gabi". Aí chegam aqui, e bem... vejam só, todo mundo dando de cara com argumentos consolidados, baseados em pesquisas empíricas. O que eles fazem? O que sempre fizeram: fecham os olhos."

Ou seja, o cara vem e insulta os milhões de "crentes" Brasil afora, e espera que eles venham ouvir sua grande sabedoria? Muito legal acusar o outro de usar falácia de argumentação (mais sobre isso em breve) e cometer uma falácia no mesmo argumento (por exemplo, a falácia do acidente ou a falácia do espantalho). Só que nada disso importante, porque o que rola na igreja não é convencimento, é persuasão.

"*Criar um filho que venha a ser homossexual ... -_-"

Questionar a lógica de um pastor é fácil, quero ver você questionar o uso da expressão abominável que é "criar um filho".

"Véi, vc já imaginou se do dia pra noite a gente tivesse q parar de sentir tesão em bunda e peitos? Fodeuuu, meu jovem."

Ou seja, a homossexualidade é tão horripilante pra você quanto pro Silas. Oy vey.


III.

Mas então, por que que essa gente toda diz isso, sendo que os evangélicos sequer vão ver o vídeo, e muito menos os comentários? É simples: o que você, compartilhador de Facebook e comentarista de YouTube, estão fazendo, é afirmando e reforçando suas próprias identidades. Os comentários não são pros evangélicos lerem, são pros ateus feministas veganos lerem. Você tá dizendo que a ciência desprova as crenças do bispo ("desprovar crença" é ótimo), mas o que todo mundo lê é que você é um intelectual culto que tem o refinamento de saber das nuâncias genéticas inerentes ao homossexualismo (opa, não, foi mal, você usaria "homosexualidade"). Você quer que as pessoas te vejam como Ser Racional, o que é claro só faz com que você negue mais ainda sua irracionalidade e a projete em alvos convenientes como o Silas.

Aqui um colunista do UOL nos explica que até a Igreja católica não condena mais os homossexuais, como se a Igreja fosse um grande parágono da moralidade e da ética. Ele nos diz que até a própria Bíblia contém alusões à homossexualidade, etc... Mas, mais uma vez, o único evangélico que vai ler esse artigo é o Silas, pra depois usar no sermão dele como prova de que os não-crentes caíram sobre a influência do demo. Resultado final do seu compartilhamento: você projeta uma identidade de racional e intelectual, o Silas projeta a identidade de defensor dos pobres e oprimidos, e tudo continua exatamente na mesma merda que tá há milênios.

Mais uma vez, independentemente de você ser crente ou ateu, gay ou homofóbico, homem ou mulher, o que acontece é que você participa do debate na forma que foi determinada por quem detém o poder. Lembrem que quem sai ganhando numa guerra não é um lado nem outro, é a indústria bélica. No caso, quem tá ganhando aqui é quem faz propaganda no YouTube ou no UOL. O que reina é a discórdia, e o espírito conciliatório desaparece.


IV.

Tá com raiva do Silas? Ponto pra ele!

"Mas então que que eu vou fazer, deixar esses homofóbicos ganharem?" Cara, por que que você ainda acredita que isso é uma luta? Quem disse que você tem que ganhar? Que se dane o que Silas Malafaia acredita! Ao comentar no barzinho que você viu (os primeiros 2 minutos e meio da) a entrevista, ao compartilhar o post da ATEA ou do humor inteligente ("pleonasmo..."), você tá não só criando uma identidade e esperando que os outros acreditem que você é essa pessoa, você também tá entregando munição pros evangélicos fazerem essencialmente a mesma coisa do lado deles. O olho-por-olho deixa todos cegos no final das contas.

Pare de mandar os pastores evangélicos à merda. Como você se sentiria se um evangélico já chegasse acusando você de ser um pecador imoral (erm, tá, talvez não foi o melhor exemplo, há uma boa chance que você adoraria isso)? Se você quer ajudar os homossexuais, pare de dar credibilidade aos homofóbicos! Se você quer convencer os "ignorantes" a "ouvirem a voz da razão", esquece, a razão é só 50% da história.

Mas se a razão não vai convencer ninguém, por que que os evangélicos continuam indo à igreja e dando o dízimo? Já te falei, não é convencimento, é persuasão. Você já se imaginou no lugar de um cara desses? "Ah, mas se eu fosse ele, eu..." errado, se você fosse ele você não seria você, tem que ser tudo sobre você? Se você vivesse na escassez e não tivesse nenhuma oportunidade pra subir na vida (e não me vem com esse papo que a classe C tem maior poder de compra - não deixa de ser classe C), quem você iria ouvir? O cara que diz que tudo isso é um acaso, e que se você nasceu pobre, azar o seu? Ou o cara que diz que tudo isso é uma prova, é coisa do diabo, que no fundo você é merecedor do céu (e pode dividir em dez vezes!)?

Olha, tudo bem, eu sei que seu propósito não é se mostrar como superior, mas quando você acusa alguém de ignorância, você se coloca necessariamente como superior. Sem contar que trazer a ciência pruma discussão religiosa é tão ruim quanto trazer a religião pruma discussão científica. Isso não quer dizer que religião e ciência são mutuamente exclusivos, mas que um argumento científico não tem lugar num debate religioso e vice-versa. No final das contas, você acaba se colocando como adversário, e só vai reforçar ainda mais a crença do indivíduo.

E a sua própria.
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