I.
Uma cruzada feminista não deixa de ser guerra |
Você não precisa ter um doutorado em psicologia social pra saber que o Brasil é um país tremendamente machista. Certamente as feministas não nos deixam esquecer. E o pior é que grande parte do machismo é velada, inconsciente. É que nem o racismo: o problema geralmente não é que a pessoa é racista intencionalmente, mas que ela nem sabe que está sendo racista. Nesse sentido, o avanço do feminismo é positivo, feminazis à parte, porque traz à tona a questão do preconceito sexual e da objetificação. A questão é: nossa atitude em relação ao preconceito e à objetificação ajudam a eliminá-los, ou, em muitas instâncias, simplesmente o reforçam?
Façamos uma analogia com os Estados Unidos. O que acontece lá? Cada dia que passa as opiniões lá se tornam de mais em mais extremas. Hoje em dia não há mais espaço para a conciliação: ambos os lados se recusam a ceder o que quer que seja, e botam a culpa de tudo nos opositores. É claro que nesse caso a situação é mais ampla e mais grave, mas é um bom indicativo de onde as coisas podem acabar aqui: de um lado os progressistas, de outro lado os conservadores, ou seja, feministas e machistas. Vale perguntar: até que ponto o feminismo ativamente encoraja o machismo? Nos Estados Unidos, se você é democrata e discute com um republicano, você só acaba reforçando a imagem dele, e o extremismo reina. Veja aqui para entender melhor como funciona essa dinâmica.
"Mas que absurdo, o problema são os machistas cretinos!" Sim, eles são a origem do problema. Mas numa briga a culpa é tanto de quem começa quanto de quem continua. É claro que as pessoas devem continuar lutando por igualdade de direitos (e deveres, mas ninguém gosta de falar disso no Brasil), mas é preciso tomar muito cuidado com nosso discurso. É claro que há uma tremenda objetificação, mas o problema não é que apenas as mulheres são objetificadas, mas que todo mundo é. É claro que as mulheres são alvo de preconceito, mas quem realmente tenta entender por que isso acontece?
II.
Você vai pensar que eu tou sendo um puta hipócrita falando que o discurso feminista é muito opositorial, sendo que eu mesmo provoco e enfatizo as oposições? Mas a questão é justamente essa: eu tou fazendo de propósito. Eu provoco pra que você não tenha uma atitude passiva de "ahã, ahã" - é por isso que eu não tou aqui declamando os absurdos do machismo: bastante gente fala disso. Eu enfatizo as oposições pra que você perceba que há oposições e que eles afetam nossa visão de mundo em todos os aspectos. A ideia é que você olhe para si mesmo de uma perspectiva diferente - as conclusões às quais você chegar são problema seu.
Da mesma forma que no exemplo citado acima, dos evangélicos versus os ateus, se você tá participando da batalha, você já perdeu. Se o cara vem e fala que a mulher foi estuprada porque as roupas dela (ou a falta de roupa, no caso) provocaram o estuprador e a culpa não é dele, olhe pra ele com desdém porque esse tipo de opinião não merece seu tempo. Se você começa a debater o cara, ele só vai ficar defensivo e vai insisitir ainda mais na (i)lógica dele. Esse tipo de argumento não é mais sobre lógica ou filosofia ou o que seja, é pessoal, é sobre eu x você. Aliás, não exatamente. É sobre a imagem de 'eu' x a imagem de 'você'.
Esse cara que culpa a mulher no caso do estupro não chegou a essa conclusão porque ele fez uma decisão racional. Desde o século XVII, o racionalismo tem bombado, e realmente, naquela época precisava mesmo, mas o que aconteceu foi que acabamos nos esquecendo que a irracionalidade é 50% da realidade. Esse cara diz que é culpa da mulher porque ele tá se identificado como "macho de verdade". O machismo dele não é uma escolha consciente per se, mas um sintoma da escolha de imagem dele. Ele tá preocupado demais com o que as pessoas acham dele pra refletir sua própria moralidade, e se ele tenta estabelecer essa identidade de macho, é porque de alguma maneira ele é recompensado. O problema não é que ele é machista, o problema é que ele é narcisista.
III.
Mas falemos de objetificação. Vamos deixar bem claro que o papel da mídia é execrável, pra você não vir gritando sobre os padrões inatingíveis. Mas quem que tá consumindo a mídia mesmo? A mídia é má, pode até ser, mas ela só faz isso porque dá IBOPE. A questão aqui não é a mídia, ainda tem muita propaganda por aí pra comentar isso.
Pra entender essa questão melhor, precisamos considerar a diferença entre sexo e masturbação. O que os dois têm em comum é que em ambos os casos há uma expressão da sexualidade, da libido. A diferença é que no sexo você transa com um outro ser humanos, enquanto que na masturbação você transa com um objeto. Mas isso é óbvio, certo? O que não é óbvio é que masturbação não é só o que você faz no chuveiro sozinho. O Carnaval, por exemplo, é um festival de masturbação.
"Uai como é que é masturbação se eu tou transando com a outra pessoa?" Não, você não tá transando com outra pessoa, você tá transando com um objeto. Você só tá preocupado em gozar, em botar mais nome na sua lista de conquista, em dizer que pegou geral. O que rola não é uma troca de energia vital com outra pessoa. Ou vai querer me convencer que você liga pra outra pessoa? Que você quer saber o que ela gosta de ler, o que ela do marxismo, de onde vem a família dela?
Veja bem, isso não quer dizer que há algum problema com a masturbação. Masturbação é divertido e todo mundo faz de vez enquando, sozinho ou não. Quem não goza fica pirado (vide os escândalos sexuais nas igrejas onde os padres são celibatos), não há dúvida. Mas que fique bem claro: masturbação é sexo com objeto. Se você vai no churrasco da universidade e depois reclama que os caras lá são todos babacas machistas, o problema é que você foi lá em primeiro lugar. Você sabe que as pessoas lá vão te encarar como objeto, esse é praticamente o objetivo declarado do evento! "Chupol", chama o churrasco do curso de Ciência Política. Se você sai num encontro com o cara e ele passa o tempo todo olhando pros seus peitos e não presta atenção no que você fala, sim, ele é um cretino. Agora, se você vai de mini-saia e decotão pruma bacanália qualquer, o cara que fica olhando pros seus peitos não é cretino, ele é honesto. É uma questão de intencionalidade.
Ou seja, há objetificação sim, mas tenho que repetir: se um não quer, dois não brigam. Se você fala em "pegar vários" ou só quer um monte de one-night stand, massa demais, só não vem reclamar que não consegue achar homem/mulher que preste. "Ah mas o cara que pega vários é garanhão, e a mulher que pega vários é fácil, isso que é o machismo!" Sim, então faça o que é melhor pra todo mundo: vá embora. Não converse com essa pessoa. Se você não dá valor ao comentário que você é 'fácil', então esse pedaço de discurso desaparece. E você ainda promove sua própria individualidade: você não é mais 'fácil' ou 'difícil', você é a/o [insira seu nome].
IV.
Acima: 'homem de verdade' de verdade |
Mas o grande risco do feminismo é que as mulheres queiram se tornar homens. O problema do machismo não é que ele subvalora a mulher, mas que ele subvalora o feminino, e isso são coisas distintas. Afinal, a gente fala de 'feminismo', não de 'mulherismo'. As feministas novatas apontam para o pequeno número de mulheres presidentes, CEOs, diretoras, etc, sem perceber que aí elas tão deixando sua definição de sucesso ser aquela do masculino. O feminino, arquetipicamente, não busca atingir uma posição de liderança externa, isso não importa, é coisa do masculino. "Ah mas e se a mulher quiser virar presidente?" Ótimo, que ela o tente (Dilmão conseguiu - o apelido não é à toa) - mas isso vale pra mulher que características masculinas.
A questão toda é uma questão de valoração, não uma questão de valorização. A valorização implica dar um valor, ou seja, tornar aquilo um objeto. 'Valoração' significa 'dar valor a', e é isso que faz tanta falta no caso do feminino. Dizer a uma mulher para ele se valorizar é muito perigoso - e sim, eu entendo que não é nesse sentido que a palavra é usada, mutabilidade da língua, blablabla, mas a escolha de palavras não deixa de ser importante, até pela atuação no nível inconsciente.
Como podemos ver mais uma vez no caso do racismo, não demora muito pra projeção seguir a desvaloração: as características associadas aos negros (seja quais fossem) eram negadas pelos próprios brancos, e eles as projetavam (projetam...) essas características de volta nos negros, sentindo-se desse modo desassociados a elas. Mas o Jung não foi o único a perceber que isso leva a uma série de problemas, que geralmente permanecem no plano do inconsciente.
É isso que acontece no mundo da guerra dos sexos. O feminino já é desconsiderado há muito, e o ápice veio no Iluminismo - por mais que se falasse de igualdade e liberdade, o irracional ficou de lado. Ele teve um breve ressurgimento no Romantismo (não por coincidência, quando o movimento feminista começou), mas hoje em dia ainda vive em maior parte no subterrâneo (é só ver como é popular hoje em dia ser geek, babar ovo da "ciência" - que por sinal não é tão racional quanto pensam - etc...).
O resultado não é que os homens subvaloram as mulheres, mas seus próprios lados femininos. Isso, em consequência, faz com que ele gaste ainda mais energia projetando uma imagem de ser masculino, e só consegue ver o feminino na mulher. Por exemplo: o masculino se preocupa em espalhar a semente, enquanto o feminino se preocupa em manter um só masculino. Ou seja, é masculino sair metralhando por aí, e é feminino se dedicar a um relacionamento só. No entanto, o cara procurar um relacionamento saudável torna-o por definição mais feminino, e isso apavora os narcisistas machistas. Além de tudo, ainda sentem raiva das mulheres pistoleiras, porque eles as vêem como que roubando seu papel. Se os narcisitas machistas (vejam que eu evito que 'homem é assim' e 'mulher é assado' - aí, perde-se o sujeito) conseguissem aceitar seus próprios lados femininos ("homem não chora!" - até que o papai corta a grana do fim de semana), não sentiriam necessidade de criticar mulheres mais masculinas, não as sentiriam como ameaça.
Quem sai perdendo mesmo é a mulher feminina, porque os machistas vão todos dar em cima dela, e as feministas vão criticá-la por não apoiar o feminismo ativamente (ou seja, de forma masculina). Ou seja: se você quer ser feminista, dê valor ao próprio feminino em vez de realçar as suas características masculinas. A discriminação contra as mulheres é uma consequência, não uma causa.
V.
Voltamos então ao título. Sem dúvida você pensou "como assim, no estupro a mulher não quer mas o cara transa com ela!" Aí é que tá: isso não é transa, é masturbação (o objeto sendo não uma mulher, mas um ser humano inferior de alguma - é uma fantasia de poder, olha quanto estupro tem na prisão). A transa, ou seja, a sexualidade, requer dois sujeitos.
Sem dúvida o feminismo é importante, mas no sentido de valorar o feminino. Ou seja, essa questão será resolvida não quando mais mulheres forem presidentes ou cientistas, mas quando o narcisismo e o anti-socialismo (desrespeito às regras sociais - leia-se, estupro, nesse caso) não forem mais as forças dominantes, quando o extremismo de qualquer tipo for eliminado - ou pelo menos restrito às margens, não sei se é possível acabar com o extremismo. O mundo ideal não é um mundo feminista - é um mundo em que o feminismo não é necessário.
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