![]() |
Pessoas inteligentes |
"Pessoas mais inteligentes dormem tarde, afirma estudo." Eis a manchete de um artigo postado no blog Engenharia É. O que você acha que tá lendo é que a ciência mostra que seus hábitos noturnos foram justificados, mas o que você lê de verdade é somente um reforço a sua identidade, à identidade que você acha que escolheu pra você mesmo. Se você tá lendo esse blog, certamente você se acha um cara inteligente, e provavelmente é, pelo menos num sentido de capacidade de raciocínio lógico e espacial. Mas o que esse artigo realmente faz é dar uma desculpa pra você não mudar. Se você leu, é pra você.
Vamos olhar pra você, Pedro Henrique, aluno de engenharia. Você tá no 6o semestre, já bombou uma ou outra matéria, não sabe direito o que quer da vida ainda, mas ei, pelo menos vai ter um bom emprego quando se formar, certo? Você tá passeando pelo Facebook às 3 da manhã, e vê a manchete acima. É claro que você vai clicar no link, porque isso permite que você alivie a sensação de inutilidade que pervade sua vida. Esse artigo vai passar a mão na sua cabeça e te assegurar, dizendo que não é culpa sua que você passa seu tempo memorizando dados e jogando videogame e dormindo mal pra caralho, é porque você é um cara Inteligente, é você que vai salvar o mundo do Feliciano, naquele momento mágico em que você for O cara.
Uma rápida passada pelo artigo, e amanhã você comenta isso com teu broder enquanto vocês matam a aula pra comer um salgadinho: "Quem dorme mais tarde é mais inteligente!" Repare que você trocou a causalidade sem nem pensar no assunto. Isso é porque esse artigo, esse estudo, são uma fraude. Começa com o estudo: cadê ele? Não tem nenhum link pra tal estudo, só pro jornal de onde eles tiraram essa informação. Isso já devia acionar seus alarmes, mas eu acho que duas décadas de Coca e Cheetos devem ter deixado ele meio defeituoso. Mas tem pior.
II.
"Outros estudos encontraram uma ligação entre o período vespertino com tirar notas boas na escola"
"Outros estudos", ou seja, impossível saber se foi algo rigoroso ou se eles só tiraram isso tudo da bunda e assinaram os nomes de cientistas em baixo. Mas tem outro problema. Você pensou "eu tirei boas notas, eu durmo tarde, há, sou eu!", parabéns, pode mandar seu contracheque direto pro BB e pro PT, você perdeu, cara. Quem sai ganhando aqui é o Sistema, porque você continua vivendo sua vida medíocre, achando que tá tudo bem porque você é "inteligente". Você já parou pra pensar o que são notas e o que elas medem? Vou te dar uma dica: não é inteligência.
Achar que é "inteligente" pode funcionar pro PH enquanto ele tá na facu, mas não vai adiantar muito quando ele tiver se divorciando e odiando o emprego dele fazendo banco de dado pro TCU. Esse tipo de artigo não é ciência, é masturbação, é punheta mental. Pro blog ele serve pra gerar conteúdo, porque os editores sabem que você vai acabar postando esse link no muro da sua mãe, e olha só que bacana, saiu um livro novo do Dan Brown, como que eu não sabia disso?
O PH nunca parou pra pensar que nenhuma criança na história disse "quando eu crescer, quero ser programador de banco de dados!". Quando ele era pequeno ele tinha sonhos de ser jogador de futebol, de ser caubói, de ser ninja. Hoje em dia o sonho dele é sentir tesão pela mulher que tá cada dia mais gorda e mais perua, mas nem isso rola. Ele esqueceu dos sonhos dele pra viver uma fantasia que ele absorveu dos pais/família/sociedade/cultura. Pra isso que serve esse tipo de artigo: depois de mais uma noite em que a mulher dele tem dor de cabeça, ele se lembra que pelo menos ele é inteligente, ele dorme tarde. Ah, mas hoje em dia ele não dorme mais tarde. Será que ele emburreceu?
III.
Toda psiquê é possuída de mecanismos de defesa, sem os quais seria impossível sobreviver os massacres diários da vida. Precisamos ter um sentido de identidade consolidada, senão não dá pra aguentar seu chefe cretino: "eu posso ser um reles empregado, mas pelo menos não sou um babaca que nem ele". O problema é que o pai do PH foi ausente ou fraco, ele prestava mais atenção ao futebol e à secretária dele do que aos próprios filhos. Resultado: o PH nunca aprendeu a superar os mecanismos de defesa, ele ficou subserviente a eles, a mãe dele disse que ele podia ser qualquer coisa e o pai dele não disse porra nenhuma e agora ele acha que precisa ser tudo, sem ser nada.
O PH aprendeu que ele pode escolher o que ele quiser, o que parece lindo, mas o problema é que ninguém ensinou pra ele COMO escolher. Depois ele se encontra fazendo inscrição no vestibular, sem nunca se perguntar pra que diabos serve essa merda de vestibular, não, os pais dele sempre reforçaram que o importante era ele passar no vestibular, senão não ganhava carro, e como ele não aprendeu a escolher ele deixa os outros escolherem por ele. E ele escolhe uma engenharia qualquer, meio arbitrariamente, porque aí a mãe dela ia poder se gabar pra vizinha: meu filho passou em engenharia! E daí?
Anos depois, o PH tá miserável na engenharia, ele só estuda pra não receber bronca dos pais por bombar mais uma matéria. Estuda porra nenhuma, memoriza. Ninguém ensinou ele a estudar também. Só que largar o curso tá fora de cogitação, todo mundo ia ver que ele não é "inteligente" nem "responsável". A mãe ia ficar horrorizada. "Tudo bem, eu vou fazer um concurso, aí depois que eu passar eu posso descobrir quem eu sou." Resultado: mais alguns meses ou anos de memorização inerte, um concurso nada meritocrático, dois semestres de francês, uma viagem pra Europa, algumas aulas de violão, e a percepção que ele tá mais perto dos 40 do que longe.
O que nos leva a um ponto crucial no artigo:
IV.
"A pesquisa também afirma que as pessoas que ficam acordadas até tarde são menos confiáveis e mais propensas a sofrer de depressão e vícios diversos."
Ele nunca vai admitir isso pra ninguém, mas o Pedrinho sabe que no fundo ele não é confiável e que ele é deprimido e viciado em pornô/bebida/maconha/videogame. Ele racionaliza/projeta que quem não é confiável é o Malafaia, é o Sarney. Mas ele sabe que no fundo esse "estudo" tá falando dele, que não precisa se preocupar com a depressão e o vício porque ele é "inteligente", e ele pode falar isso pra mãe, que conta pra vizinha que sim, meu filho dorme absurdamente tarde, mas isso só mostra que ele é inteligente (NB. como ela sabe que não fez merda nenhuma na vida, ela usa o filho pra se redimir).
Ou seja, ele ainda faz tudo pra manter a identidade que passaram pra ele, de que ele é inteligente porque ele tirou nota 10 na prova de ciência da 5a série. Já que ele nunca se preocupou em procurar uma identidade própria, já que ele recebeu tanto reforço positivo pra ser quem mamãe queria que ele fosse (tudo que ela não foi), ele não consegue se imaginar sendo outra coisa. O artigo e punhetas parecidas são o que faz com que o Pedro Henrique não tome duas caixas de Dorflex, ao mesmo tempo em que impedem que ele reconheça que ele não é tão "inteligente" assim, mas que não tem absolutamente nada de errado com isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário