segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A diferença entre ética e moralidade

I.

Você é a metade de cima ou a de baixo?

Gustavo Ioschpe se pergunta na Veja se ele deve educar seus filhos para serem éticos. O artigo do Gustavo é legal porque, ao incorrer numa conflação de ética e moralidade, ele acaba sendo um bom representante do brasileiro, ou até do ser humano de maneira geral.

Resumindo: o pai do Gustavo, nas suas próprias palavras, era obcecado com ética e conduta correta, seja o que isso quer dizer. Você sabe que esse artigo foi escrito pra Veja porque tem uma foto da Hannah Arendt, uso de palavras tipo leitmotiv, e citações de Sócrates e Kant. Tudo bem que quase ninguém que tá lendo a Veja vai ter lido a Crítica da Razão Pura, mas é só uma questão de credibilidade mesmo, de estabelecer a autoridade: ó, o que eu falo é certo porque eu sou educado e culto. Dica: o recurso à autoridade é uma falácia.

Enfim, o Gustavo tá na dúvida sobre a educação que ele deve dar aos filhos: será que ele os educa para serem pessoas éticas, como seu pai o fez, ou será que ele os ensina o jeitinho brasileiro pra serem mais felizes nessa nossa sociedade medíocre? O que fica pra escanteio é o que o filhos pensam, mas enfim. Tudo bem, o Gustavo certamente é uma pessoa ética (ou será que é? Repara como ele projeta seu próprio lado "malandro" no povo brasileiro), mas e daí? Isso não quer dizer absolutamente nada. Mentira, quer dizer que ele nunca reformou o código de ética dele, ou seja, ele é só ética e nenhuma moralidade.


II.

A ética é o superego, e a moralidade é a reforma do superego. Considere a situação: você descobre que um colega seu tá roubando um dinheiro da empresa, mas ele só tá fazendo isso porque ele precisa pagar uma operação caríssima pra salvar a filha dele porque o plano de saúde da empresa não cobre. Antes de mais nada, pergunte-se o que você faria. A coisa ética a se fazer seria denunciá-lo, pois ele está descumprindo a lei imposta. A coisa moral a se fazer seria calar a boca, porque puta que o pariu a filha dele tá morrendo! A coisa moral seria você mesmo tomar dinheiro da empresa e dar pro cara.

A ética é um conjunto de regras sobre as quais uma devida sociedade entra em acordo, seja sob forma de lei ou sob forma de valor comum (pontualidade, etc.). A moralidade, por outro lado, não pode ser definida dessa forma. Ela é algo pessoal, e é irracional, muitas vezes uma afronta à lógica. Você faz algo porque você sabe que é a coisa certa a se fazer e ponto final. A moralidade é você saber quando seguir a regra e quando quebrar a regra, quando ouvir o que seu pai falou e quando ignorá-lo. E não tem ninguém pra te dizer se você fez o certo ou não.

A função do superego é trazer um senso de continuidade que permite a sobrevivência de indivíduos e sociedades. Sem uma ideia fixa de quem "eu sou", não há como progredir, pois não há diferenciação entre "eu" e "outro". No entanto, o superego, a ética, não tem valor moral. A ética faz sentido num devido contexto mas ela nunca pode ser realmente universal. Esse é o erro no qual incorrem tanto o Gustavo como a maioria das pessoas.

O Gustavo fala das regras que ele absorveu do pai dele, que sem dúvida era um militar, ou de família militar, mas nunca questiona essas regras. Ele repete simplesmente o que o pai dizia, sem se perguntar se esses valores realmente são aptos. Tá, o Brasil tem vários problemas, violência, machismo, corrupção, blablabla, mas quem vai dizer que a vida no Brasil é pior que em outros cantos do mundo? Se você acha a favela armada ruim, imagina onde os loucos são armados. Ou seja, falta de pontualidade atrapalha, sim, atrapalha, claro, mas no final das contas a diferença não é tão grande assim, e sem dúvida todo mundo beneficia de um atraso aqui ou ali.


III.

O problema está nos extremos: não se pode mentir, ponto. Imagine-se na situação do Gustavo quando criança, quando ele ganhou um presente da mãe que ele não gostou: será que ele fala a verdade e machuca os sentimentos da sua mãe, ou será que ele mente e arrisca sofrer a punição do pai? O certo teria sido falar pra ele que a honestidade é de suma importância, sim, mas que às vezes é necessário uma mentirinha. O problema da mentira não é inerente à mentira, ele aparece quando a mentira causa algum prejuízo a outro.

E como saber quando mentir e quando falar a verdade? Não existe manual, não adianta olhar no seu Vade Mecum, não tá na Constituição. Só você que vai saber, ali, na hora. Isso que é a moralidade, e a gente pode até aprender a moralidade com exemplos e com o passado, mas não tem professor pra te dar nota, não tem pai pra te aprovar nem mãe pra te abraçar.

Mas é exatamente isso que apavora as pessoas. Não há certeza nenhuma, você não sabe 100% se fez a coisa certa. Tem que confiar. Por isso o superego é tão atrativo: ele é seguro, ele não muda, ele é constante. Pena que a vida não é assim. Certamente não é fácil, mas o superego precisa ser desconstruído e reconstruído periodicamente, senão ficamos engessados e paranoicos.


IV.

A conclusão a que o escritor chega é que sim, ele deve ensinar os filhos a serem éticos, e de fato, ser ético é exatamente o que ele faz. Mas veja bem, ele não diz que vai ser rígido com os filhos porque ele acha que é a coisa moralmente certa a se fazer, ele diz isso pra fazer que nem o pai dele, um pai que deixou o filho tão noiado com as regras que ele é incapaz de chegar a suas próprias conclusões - o artigo todo é só uma coleção de memórias e citações "eruditas".

Quando dependemos unicamente das regras de conduta, da palavra dos outros, atrofiamos nossa própria capacidade de nos lançarmos ao mundo, e acabamos sempre tomando decisões que garantem nossa segurança e nosso conforto, mas você não precisa ser historiador pra encontrar exemplos infindos de que a segurança e o conforto não nos levam a lugar algum.

Ou seja, o superego tem sua função, mas se você não exerce sua própria capacidade de julgamento moral, você acaba se apagando e tornando apenas mais uma peça do sistema, totalmente inerte. Ironicamente, é justamente o pai (leia-se, não necessariamente o pai biológico, nem necessariamente um homem) que deve ensinar isso ao filho, cortar o cordão umbilical, e dizer pra ele que ele é responsável pelas consequências das próprias escolhas e que é apenas ele que pode decidir o que é correto. Temos a tendência de partir do pressuposto que há valores universais, mas isso não existe, não há nada que garanta que ser maligno, egoísta, é ruim no final das contas.

A diferença entre a ética e a moralidade é que a ética é dos outros, e a moralidade é sua. Ou seja, se você não confia em si mesmo, na própria moralidade, você não existe.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Se o Eike é supersticioso, o que dizer sobre você?

I.


Tá, agora, lembra que isso é a Globo, ou seja, não são fatos, não é o que é verdade, é o que eles querem que seja verdade. O Eike Batista, anos atrás, foi praticamente canonizado pela mídia, o novo herói brasileiro (já parou pra pensar por que não há grandes negociadores brasileiros a nível mundial? Não, o Eike não conta, a mãe dele é alemã). No entanto, as coisas não saíram tão bem quanto se imaginava, fudeu, deu merda, Eike em crise, ou seja, Brasil em crise.

Só que é muito importante para a mídia que ela saia ilesa, então ela precisa se desassociar do Eike. Como fazer isso? Fácil, é só pintá-lo de paranoico e crente. Segundo o artigo, o Eike explicou seu fracasso como sendo resultado de mentiras e inferno astral. Qualquer um pode falar que ele tá responsabilizando o Outro e não vendo sua responsabilidade no fracasso, mas a. ele sabe muito bem por que fracassou - se não soubesse não seria quem é, seria mais um idiota qualquer; b. a gente não tá falando do Eike.

O Eike dizer que os outros mentiram pra ele é a mesma coisa que um político fazer um pedido público de desculpas por ter sido pego traindo, todo mundo sabe que a mentira tá rolando solta, mas todo mundo finge que é honesto. O que é interessante mesmo é a questão do mapa astral. Olha o que eles dizem: "O texto lembra que o empresário acredita em sorte e superstições." Viu, ele acredita em horóscopo, ele enganou a gente dizendo que era sério. Aham, beleza.

Mas para pra pensar: o mapa dele dizia que o período seria ruim pra negócios, e o período foi ruim pra negócios. Ou seja, a previsão do mapa foi confirmada. Ah, foi mal, eu esqueci, é sorte, é coincidência. Mas quando o economista da Globo acerta uma previsão, não é coincidência, é expertise. As palavras são suas inimigas.


II.

Também tem um artigo sobre o assunto na Veja, os textos dizem a mesma merda, mas olha a foto que eles usam:

Fonte: Veja
Essas fotos nunca são por acaso. Os caras sabem que quem lê a Veja odeia o Lula/PT, e puf, agora o Eike Batista é odiável também. Só que você não odeia o Eike porque ele é amigo do Lula, você odeia o Eike porque ele teve sucesso e você não.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Já tentou invadir a Rússia?

I.

Tem que passar por ele antes


Depois eu explico a dos russos. A questão do bullying é extremamente simples (como quase tudo). Sim, o bullying é um problema sério, sim, eu sei que você também sofreu com bullying, etc. A questão não é as causas do bullying, isso é muito fácil de identificar, o problema tá na resposta que dá à questão.

O que mais se ouve quando algum psicólogo ou repórter fala na TV ou na Veja é que o que as crianças devem fazer é relatar ("isso não é dedar" brincar de semântica é fácil, por definição é dedar sim) aos pais ou professores ou que seja. Isso é um absurdo. O resultado disso não é o fim do bullying, o bullying sempre existiu e sempre existirá, ao menos enquanto ainda houver pobreza e raiva e ambivalência no mundo. O resultado disso é uma geração de concurseiros.

O Cartoon Network ("eu não assisto isso" não, mas seu filho assiste - ou será que assiste, você não deve ter ideia do que ele vê) tem um site que pretende lutar contra o bullying. Bom, a primeira dica que eles dão é "não fique calado". Relaxa, você não precisa reagir à agressão, é só contar o que aconteceu. Ótica dica se você quer que seu moleque seja um covarde histriônico. A dica certa é "não fique parado", mas calma, vamo ver o que mais o Cartoon tem pra nos falar.

Tem uns videozinhos que passam no canal também que mostram um nerd e um malandro, ou alguma oposição dessa, se juntando pra falar de um interesse em comum. Hmm, beleza, os pais acham isso lindo, mas a criança sabe que ela nunca, nunca vai ver isso. Se ela ver, é apenas a exceção que confirma a regra. Pra que servem esses vídeos? Pra manter as crianças numa fantasia.


II.

Olha, relaxa cara, eu também acho que agressão não deve ser aceita, ela tem que ser canalizada, mas para com isso, o seu filho não é o bully, é a vítima. Não adianta nada falar dos bullies porque você não tem como (muito menos o direito de) interferir na família e no ambiente desses caras, a gente tem que falar aqui é de quem sofre a agressão.

O que a psicologia popular e os pedagogos e tal dizem é que devemos encorajar as crianças a delatar o meliante (viu, não é legal ficar fazendo joguinho com palavra). Mas pensa bem nas consequências disso. A criança tá aprendendo que a solução aos problemas dela nunca se encontra nela mesma, mas em alguma autoridade, que a redenção dela é função da vontade de quem detém o poder. Ou seja, a solução para a falta de poder é a entrega do pouco poder que ainda se tem.

Isso pode até resolver a situação na escola (provavelmente só vai piorar), mas o que a pessoa faz quando ela se acostumou a simplesmente relatar as agressões e depois que ela sai da escola não tem mais a quem recorrer? O que ela faz quando sofre agressões do chefe, de um assediador, de um rival, etc? As possibilidades são várias, mas provavelmente envolvem extremismo, raiva, álcool, pílulas, ou alguma combinação. "Não fique calado" cria um monte de vítimas.

A resposta certa vai variar de situação em situação, de contexto em contexto. Não adianta generalizar, o que funciona pro menino de classe média que é chamado de gordo não vai funcionar pra menina cuja bunda é diariamente alisada na favela. O que é importante, mesmo se não der certo, é encorajar a criança a resolver a situação ela mesma, na medida do possível. Tá, se o menino tá levando porrada de uns idiotas a solução não é aula de jiu-jitsu, mas se ele tá sendo chamado de nerd e tão rindo da cara dele, que caralho que vai adiantar falar isso pro professor?

A criança (ou adolescente ou adulto) tem que saber resolver problemas, e sem necessariamente partir pra agressão (meio difícil aprender isso quando até os pais agridem, mas enfim). Igualmente, não adianta achar que tudo tem solução. A criança também tem que entender que há certas coisas desagradáveis no mundo que ela simplesmente não pode mudar, às vezes o outro tem mais poder e acabou. Para de contorcer a cara, life's a bitch. Não duvido nada que seu avô tenha sofrido bullying de alguma forma, mas isso não impediu ele de mandar todo mundo tomar no cu e sair pra construir sua vida.


III.






Sem dúvida você já viu esse vídeo do menino gordo que é agredido por um magricelo e depois arremessa ele no chão. Olha o que nos diz o jornal da Globo, repara que a mensagem é mais uma vez "corra pra quem tem poder". Mas isso é natural, o jornal quer que você sempre ceda à autoridade, aí ele pode te falar o que fazer, seja votar no Serra ou comprar cerveja aguada. O problema é quando você responde desse jeito.
Esse menino foi celebrado como herói, e isso nos diz várias coisas. Primeiro é que não, não foi uma resposta apropriada, ele só se deu bem porque o magrelo não se deu mal. O gordinho é dez vezes maior que o moleque, você não precisa quebrar a clavícula de alguém pra impor seus limites. Se você acha que a resposta certa à violência é mais violência, parabéns, você é que nem os idiotas que comemoraram o assassinato do bin Laden.

Segundo que isso mostra que não você não tá procurando justiça, você tá procurando vingança. "Eu não, não sou assim" certo, mas é você que assiste Batman e Dexter. Presta bem atenção nisso porque isso é muito importante: ao se vingar, você não tá sendo justiceiro, você tá simplesmente perpetuando o status quo. A raiva do agressor original ainda vai existir, e se ele não puder descontar em você, vai descontar no filho dele, que em troca vai descontar no teu filho. Repara bem que ninguém deu muita bola pro magrelinho, mas pode ter certeza que a situação na casa dele é pior que a situação do gordinho.


IV.

E que que os russos têm a ver com isso? Bom, pra começar que nenhum império ocidental jamais conquistou a Rússia. Por quê? Porque se você tenta conquistar uma cidade russa e tem um exército maior, eles simplesmente queimam a cidade e as plantações e deixam você morrendo de frio e fome. Isso não quer dizer que você tem que dar uma garrafa de Stolichnaya pro seu filho, quer dizer que quando o outro cara é mais forte, a melhor defesa não é um bom ataque e muito menos uma autoridade, é a sagacidade.

Mas porra, é foda, como que você vai ensinar a criança a se defender (de maneira sensata) se a vida toda você falou pra ela que violência é errado, e que ela tem que reprimir todo instinto de agressão? Bom, pelo menos saiu o edital do BaCen.

sábado, 7 de setembro de 2013

A TV brasileira vista pelos estrangeiros

I.

Na verdade, o título correto é "A TV brasileira vista pela TV inglesa".

Nos anos 30, o filósofo austríaco Kurt Gödel demonstrou que um sistema pode ser coerente ou completo, mas nunca os dois ao mesmo tempo; é impossível compreender um sistema sem estar fora dele (se quiser fazer um experimento legal, fala prum materialista/reducionista que a consistência dos axiomas de um sistema não pode ser provada de dentro do sistema).

Por isso, se você pretende entender o Brasil, tem que vê-lo de fora, tem que ver com olhos de gringo. Você pode até discordar das conclusões da apresentadora ou questionar o viés dela, não é muito difícil refutar seus argumentos, mas é extremamente importante que você se veja com os olhos dela.




Não, não é coincidência que ela não falou da Globo.


Tip of the hat pra Carol pelo vídeo

domingo, 1 de setembro de 2013

O vestibular é retardado

I.

Fábrica do século 18

Aff, eu não sei onde começar essa bagaça. Fui procurar qualquer coisa no Google, mas só tinha notícia de que aconteceu ou vai acontecer tal prova, tantos porcento não fizeram a prova na UEL, blablabla um monte de inanidade. Não há absolutamente nada falando sobre o vestibular como conceito, fazendo perguntas, só um eco. Então eu fui ver essa porcaria, uma "aula" de história no G1.

Primeiro que todo mundo fala que a Globo rouba do Criança Esperança mas ninguém imagina que talvez, quem sabe, haja uma ideologia por trás do que eles publicam no site? A Globo não vai ser objetiva, ela vai dar a "aula" dizendo pra você o que ela quer que você ouça. Você acha que a Globo quer que você tenha uma visão crítica, inteligente, objetiva, etc? Não, ela quer que você assista o Jornal Nacional e a novela das dez. Junte 1+1 e a gente tem...?

Essa "aula" não ensina absolutamente nada sobre a Inglaterra do século 18. É exatamente a mesma coisa que assistir Oliver Twist. Não há nuâncias, não há várias camadas, vários atores, contextos variados, etc. Não, há apenas os patrões vs. o proletariado. Mesmo se você tem o mínimo de perspicácia pra ver que isso é apenas uma lente através da qual ver a história, você não tá se perguntando por que uma corporação conservadora (redundância) tá te alimentando com uma visão de esquerda da história.

Eu podia passar mais tempo falando de como essa "aula" não ensina nada, mas faça isso você como exercício, vê se usa esse cérebro que você aposentou muitos anos atrás. O que importa aqui é que o objetivo dessa aula virtual, e por aula virtual eu quero dizer todas as escolas, não é que você entenda o que aconteceu na Inglaterra naquela época, mas que você saiba que resposta que o professor quer ouvir.


II.

Fábrica do século 21

Que a preparação pro vestibular é o único objetivo das escolas é perfeitamente claro, tem muita gente que até sabe que tá aprendendo água. O que elas não percebem é que elas tão silenciosamente cedendo o controle a uma figura maior, abstrata, a uma grande mamãe que vai cuidar de você, não se preocupa, é só esperar 5 dias numa maca no hospital público.

Eu entendo que é difícil a gente questionar o sistema escolar porque é a única coisa que a gente conhece, é o que os nossos filhos fazem, nós fizemos, nossos pais fizeram. Mas para pra pensar um pouco na merda em que você anda rolando.

Mas calma lá, Che Jr, não adianta você organizar um protesto. Isso não é uma conspiração nacional pra emburrecer a população. O Ministro da Educação não tem uma reunião com uma cabal sombria regada de charutos e prostitutas, a Dilma não tá mandando botar propaganda do PT no livro-texto, não, o problema aqui não é o governo, o problema é você.

O que acontece é que o sistema NUNCA foi desenhado pra tornar a população mais inteligente, ninguém tá emburrecendo, foi todo mundo sempre burro. E a gente tá parado, o desenvolvimento da educação nunca aconteceu, porra você não sabia até que na Finlândia, onde as pessoas se odeiam o suficiente pra ter uma das maiores taxas de suicídio do mundo, até lá eles avançam. Você reparou que não tem vestibular na Finlândia?

O que o vestibular e o sistema educacional que gira em torno dele ensinam é que a resposta não está nos fatos, não está na argumentação, não está na lógica, não está no contexto, nada, ela tá é no livro-texto (alguém sabe dizer que escreve esses livros todos? quem publica? qual o viés? etc), ela tá no professor, ela tá no cara que faz a prova. Vai tomar no cu. Sério, puta que o pariu, você já deu uma resposta criativa, sua, pesquisada, inteligente, a alguma pergunta no ensino médio? Não, três frases não serve, e de qualquer jeito você só escreveu o que acha que eu/o professor quer ouvir, não sua análise própria.

"Mas tem que escrever uma redação no vestibular!" Sério, você chama isso de redação? 30 linhas, metade delas introdução e conclusão, não dá nem pra contar seu fim de semana em só uma página. Você se acha fodão por ter tirado nota boa na redação, enquanto isso na França o menino de 13 anos tá escrevendo redação na prova de matemática.


III.

O primeiro adágio da magia é que o mago vai desviar sua atenção enquanto ele realmente faz seu truque (e se você acha que os donos do mundo, os Arcontes, não usam princípios de magia, parabéns, ela funcionou em você). Aí enquanto você tá discutindo sobre os dois lados do debate, enquanto você critica o esquerdismo dos livros-texto, você não pergunta: 1. por que que eu tou achando que vou descobrir os fatos num texto generalista e propositalmente vago? 2. por que que tem vestibular? 3. vestibular mede o quê? etc, você fala de capitalismo e não percebe que vive no feudalismo.

Enquanto você tá aí discutindo sobre cotas raciais ou que seja, você acha que tá mandando bem porque quer que os negros vão pra universidade, e não se pergunta pra que serve essa porra de universidade. Se tá tendo uma discussão no G1, no Facebook, corra antes que seja tarde, é tudo uma distração. Você fica obcecado com as respostas e não se preocupa com as perguntas.

Pode ter certeza que se começarem a questionar o vestibular na mídia, é porque as pessoas começaram a fazer perguntas demais. Pronto, controvérsia fabricada, e o sistema educacional continua a mesma merda de sempre. Você realmente acha que o problema é o salário dos professores? É claro que isso é UM problema, mas não é o problema da educação, isso é um problema social/administrativo/etc. Quando foi que você viu alguém conversando sobre a validade do currículo escolar? "Ué, mas é pra isso que servem os pedagogos." Ou seja, não você. Ponto pros arcontes.


IV.

Porra, é tanta coisa que fica difícil dividir e falar, mas enfim, vamo lá. Pra que serve escola? Sério, alguém já respondeu essa pergunta sem repetir o que algum professor idiota falou? "Pra formar cidadãos." Tá, o que é um cidadão? "Pra aprender a viver no mundo." Ah, então foi na escola que você aprendeu a fazer imposto de renda, aprendeu a não ser influenciado por propaganda, aprender a fazer orçamento, e tudo mais, né, ufa, ainda bem. "Pra aprender os fatos que vão usar no mundo adulto." Eu te dou R$20 se você tiver mais de trinta anos, não for biólogo, e me explicar como se reproduzem os moluscos, um dos fatos tão úteis que aprendeu na escola.

A escola hoje em dia tem uma preocupação (eu tou falando da sua escola particular, não da escola em Serra da Poeira, Alagoas), e essa preocupação é passar os alunos no vestibular. Assim, mais pais desesperados, que não sabem o que é educação, vão querer botar os filhos nessa escola, e assim o ciclo se repete. Já parou pra pensar que o resultado que importa pra escola não é o aprendizado dos alunos, mas quanto dinheiro sobra no final do mês, quem sabe eles abrem outra escola em outro bairro?

Duas histórias ilustram essa tristeza:

  • Na aula de física, a menina claramente não entendeu porra nenhuma (o problema, é claro, não é que ela não aprendeu os princípios da física, que vão servir a ela no dia-a-dia, mas que ela não aprendeu os fatos cobrados na prova); o sinal toca, e a amiga dela fica pra trás com ela pra elas revisarem; o professor não aceita isso "VOCÊ É LOUCA, VOCÊ TÁ ENSINANDO SUA CONCORRENTE, ELA VAI ROUBAR SUA VAGA NO VESTIBULAR". Mensagem recebida: o que importa não é aprendizado, é receber ordens.
  • Palestra pra pais interessados em escola particular de renome, a diretora, falando sobre os alunos da escola dela: "aqui a gente ensina, desde essa idade, que esse menino é concorrente dessa menina". Eles não têm 15 anos, eles têm 8.

Pensa bem sobre isso.


V.

O valor do vestibular não tá em sua mensuração de inteligência, porque isso é a última coisa que ele faz. Ele não tem valor nenhum para os que o fazem, é só mais um obstáculo colocado pelo contexto deles que eles acham que têm que ultrapassar. O valor tá pros pais desses meninos: "meu filho passou em Direito na federal!" Parabéns, você acabou de formar mais um concurseiro.

Os pais dos adolescentes não têm a menor ideia do que é educação, do que é ensino, de como ele acontece, etc. Eles só conhecem o que eles mesmos passaram, que pode até ter nome diferente, ginásio ou sei lá que porra, mas é exatamente a mesma porcaria que hoje em dia. Portanto, é só isso que eles sabem cobrar dos filhos. Eles não têm a menor ideia se o Junior é criativo pra cacete ou só mais um autômato, eles não sabem se ele tem senso critíco, eles não sabem julgar nada disso. Por isso, eles se voltam para algo tangível, algo que eles podem medir (passou/não passou).

E é só disso que eles precisam. Como eles não sabem o que é um adolescente inteligente/etc, eles usam símbolos, que permitem a eles objetificar seus filhos, e reforçar sua identidade de "bons pais". Um bom pai se preocupa com a qualidade do aprendizado do filho, mas precisa saber medir essa qualidade, e ninguém sabe, então eles precisam de documentos ou que seja que mostre pra eles que os filhos aprenderam, notas, números, coisas vazias.

Você acha que o pai que essencialmente força o filho a fazer direito tá preocupado com a felicidade do filho? Claro que não. Ele tá preocupado com o filho fazer artes cênicas e todo mundo no trabalho falar que é viado, é hipster, sei lá. Ainda se o pai achasse que o filho tem um talento nato pro direito, aí quem sabe, mas não, ele sabe o filho é lesado e nunca se daria bem como advogado. "Pelo menos com direito ele passa num concurso público." Percebeu que o barômetro dele é o status do filho, não o conhecimento ou a habilidade dele? Ninguém quer um filho que seja excelente jurista, quer um filho que seja juiz, competência que se dane.


VI.

Vejamos o que o bom menino estudioso aprendeu:

  • que a resposta certa não é a que é lógica ou ética, é a que o corretor determinou
  • que ele não tem que aprender a analisar conteúdo, ele precisa memorizar fatos
  • que na vida é tudo certo ou errado, múltipla escolha, que não há ambiguidades ou ambivalências ou relatividade
  • que basta ele passar no vestibular ou se formar na universidade que ele vai ser uma pessoa competente, moral, etc
  • que o que mede a inteligência dele é uma prova binária
  • que apenas fatos importam, não contexto
  • etc
Parabéns, você não formou um cidadão, formou mais uma bateria pro Sistema.

"Cara, mas o que que tu tá querendo dizer?" Não importa o que eu quero dizer, importa o que você entendeu.
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