segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A diferença entre ética e moralidade

I.

Você é a metade de cima ou a de baixo?

Gustavo Ioschpe se pergunta na Veja se ele deve educar seus filhos para serem éticos. O artigo do Gustavo é legal porque, ao incorrer numa conflação de ética e moralidade, ele acaba sendo um bom representante do brasileiro, ou até do ser humano de maneira geral.

Resumindo: o pai do Gustavo, nas suas próprias palavras, era obcecado com ética e conduta correta, seja o que isso quer dizer. Você sabe que esse artigo foi escrito pra Veja porque tem uma foto da Hannah Arendt, uso de palavras tipo leitmotiv, e citações de Sócrates e Kant. Tudo bem que quase ninguém que tá lendo a Veja vai ter lido a Crítica da Razão Pura, mas é só uma questão de credibilidade mesmo, de estabelecer a autoridade: ó, o que eu falo é certo porque eu sou educado e culto. Dica: o recurso à autoridade é uma falácia.

Enfim, o Gustavo tá na dúvida sobre a educação que ele deve dar aos filhos: será que ele os educa para serem pessoas éticas, como seu pai o fez, ou será que ele os ensina o jeitinho brasileiro pra serem mais felizes nessa nossa sociedade medíocre? O que fica pra escanteio é o que o filhos pensam, mas enfim. Tudo bem, o Gustavo certamente é uma pessoa ética (ou será que é? Repara como ele projeta seu próprio lado "malandro" no povo brasileiro), mas e daí? Isso não quer dizer absolutamente nada. Mentira, quer dizer que ele nunca reformou o código de ética dele, ou seja, ele é só ética e nenhuma moralidade.


II.

A ética é o superego, e a moralidade é a reforma do superego. Considere a situação: você descobre que um colega seu tá roubando um dinheiro da empresa, mas ele só tá fazendo isso porque ele precisa pagar uma operação caríssima pra salvar a filha dele porque o plano de saúde da empresa não cobre. Antes de mais nada, pergunte-se o que você faria. A coisa ética a se fazer seria denunciá-lo, pois ele está descumprindo a lei imposta. A coisa moral a se fazer seria calar a boca, porque puta que o pariu a filha dele tá morrendo! A coisa moral seria você mesmo tomar dinheiro da empresa e dar pro cara.

A ética é um conjunto de regras sobre as quais uma devida sociedade entra em acordo, seja sob forma de lei ou sob forma de valor comum (pontualidade, etc.). A moralidade, por outro lado, não pode ser definida dessa forma. Ela é algo pessoal, e é irracional, muitas vezes uma afronta à lógica. Você faz algo porque você sabe que é a coisa certa a se fazer e ponto final. A moralidade é você saber quando seguir a regra e quando quebrar a regra, quando ouvir o que seu pai falou e quando ignorá-lo. E não tem ninguém pra te dizer se você fez o certo ou não.

A função do superego é trazer um senso de continuidade que permite a sobrevivência de indivíduos e sociedades. Sem uma ideia fixa de quem "eu sou", não há como progredir, pois não há diferenciação entre "eu" e "outro". No entanto, o superego, a ética, não tem valor moral. A ética faz sentido num devido contexto mas ela nunca pode ser realmente universal. Esse é o erro no qual incorrem tanto o Gustavo como a maioria das pessoas.

O Gustavo fala das regras que ele absorveu do pai dele, que sem dúvida era um militar, ou de família militar, mas nunca questiona essas regras. Ele repete simplesmente o que o pai dizia, sem se perguntar se esses valores realmente são aptos. Tá, o Brasil tem vários problemas, violência, machismo, corrupção, blablabla, mas quem vai dizer que a vida no Brasil é pior que em outros cantos do mundo? Se você acha a favela armada ruim, imagina onde os loucos são armados. Ou seja, falta de pontualidade atrapalha, sim, atrapalha, claro, mas no final das contas a diferença não é tão grande assim, e sem dúvida todo mundo beneficia de um atraso aqui ou ali.


III.

O problema está nos extremos: não se pode mentir, ponto. Imagine-se na situação do Gustavo quando criança, quando ele ganhou um presente da mãe que ele não gostou: será que ele fala a verdade e machuca os sentimentos da sua mãe, ou será que ele mente e arrisca sofrer a punição do pai? O certo teria sido falar pra ele que a honestidade é de suma importância, sim, mas que às vezes é necessário uma mentirinha. O problema da mentira não é inerente à mentira, ele aparece quando a mentira causa algum prejuízo a outro.

E como saber quando mentir e quando falar a verdade? Não existe manual, não adianta olhar no seu Vade Mecum, não tá na Constituição. Só você que vai saber, ali, na hora. Isso que é a moralidade, e a gente pode até aprender a moralidade com exemplos e com o passado, mas não tem professor pra te dar nota, não tem pai pra te aprovar nem mãe pra te abraçar.

Mas é exatamente isso que apavora as pessoas. Não há certeza nenhuma, você não sabe 100% se fez a coisa certa. Tem que confiar. Por isso o superego é tão atrativo: ele é seguro, ele não muda, ele é constante. Pena que a vida não é assim. Certamente não é fácil, mas o superego precisa ser desconstruído e reconstruído periodicamente, senão ficamos engessados e paranoicos.


IV.

A conclusão a que o escritor chega é que sim, ele deve ensinar os filhos a serem éticos, e de fato, ser ético é exatamente o que ele faz. Mas veja bem, ele não diz que vai ser rígido com os filhos porque ele acha que é a coisa moralmente certa a se fazer, ele diz isso pra fazer que nem o pai dele, um pai que deixou o filho tão noiado com as regras que ele é incapaz de chegar a suas próprias conclusões - o artigo todo é só uma coleção de memórias e citações "eruditas".

Quando dependemos unicamente das regras de conduta, da palavra dos outros, atrofiamos nossa própria capacidade de nos lançarmos ao mundo, e acabamos sempre tomando decisões que garantem nossa segurança e nosso conforto, mas você não precisa ser historiador pra encontrar exemplos infindos de que a segurança e o conforto não nos levam a lugar algum.

Ou seja, o superego tem sua função, mas se você não exerce sua própria capacidade de julgamento moral, você acaba se apagando e tornando apenas mais uma peça do sistema, totalmente inerte. Ironicamente, é justamente o pai (leia-se, não necessariamente o pai biológico, nem necessariamente um homem) que deve ensinar isso ao filho, cortar o cordão umbilical, e dizer pra ele que ele é responsável pelas consequências das próprias escolhas e que é apenas ele que pode decidir o que é correto. Temos a tendência de partir do pressuposto que há valores universais, mas isso não existe, não há nada que garanta que ser maligno, egoísta, é ruim no final das contas.

A diferença entre a ética e a moralidade é que a ética é dos outros, e a moralidade é sua. Ou seja, se você não confia em si mesmo, na própria moralidade, você não existe.

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