quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Empatia ou narcisimo?

I.

Ah, se tivesse Facebook na 2a Guerra...

Parte do nosso objetivo aqui é de analisar não os eventos per se, mas a maneira em que as pessoas reagem a esses eventos. Naturalmente, me senti compelido a comentar (os comentários sobre) a tragédia de Santa Maria. No entanto, Lucas Napoli o faz de maneira muito mais eloquente. Portanto, vou me limitar a, bem, comentar o comentário no comentário sobre o comentário. Se você quiser me acusar de andar em círculos, vá em frente, é um elogio.

Enfim, o que vale é que nosso amigo aí acerta na mosca, e quem sabe você dá mais credibilidade a ele porque ele é, de fato, um psicanalista. Se você não teve saco pra ler ("pô, cara, não tenho paciência pra ficar lendo desse tanto, eu sou uma pessoa trabalhadora" - eu também, mas bom), a ideia é essa: você compartilhou a imagem acima, ou algo similar, pelo mesmo motivo que você comprou a pulseira do Lance Armstrong, ou seja, porque o que vale é a imagem que você transmite. Sua mensagem de "luto" (não é à toa que a palavra é a mesma que a conjungação em primeira pessoa do verbo 'lutar') não vai consolar ninguém, do mesmo modo que sua pulseirinha não vai curar câncer nenhum (como se o câncer fosse uma doença só). Mas, em compensação, ela vai dar a dica: olha como eu me preocupo com os outros!


II.

O cara do blog é simpático demais pra jogar a real nesse/a comentador/a, mas eu não tenho tais restrições. Essencialmente, essa pessoa dá mais uma demonstração da questão que o cara tava falando. Vamos por partes:

Entendo o ponto de vista, mas não consigo concordar. Muitas pessoas ficaram realmente chocadas com essa tragédia, uma coisa que poderia ter acontecido em qualquer lugar do Brasil, qualquer boate… Poderia ser você, seus filhos, seus amigos, seus irmãos.

Hmm, tá, isso já aconteceu na Argentina, mas você não tava nem aí. Sem contar que isso não quer dizer nada, qualquer coisa "pode" acontecer em qualquer lugar a qualquer hora.

E isso choca. Minha familia por parte de mãe é toda de Santa Maria, foi onde meu irmão mais velho nasceu, foi onde eu passei minhas férias, foi onde eu fui estudar por um tempo, onde a minha irmã faz faculdade. No momento estou fazendo estagio na França e, mesmo de longe, essa tragédia me pegou em cheio.

Ah, agora começa a fazer sentido. Repare que o fato da pessoa estar na França é completamente irrelevante ao argumento dela, mas ela se sente obrigada a mencionar do mesmo jeito. Deu pra ver como o que interessa aqui não é a tragédia em si, mas é a própria pessoa que comenta? É uma questão de credibilidade: eu estudo na França, portanto eu sou inteligente, portanto você deve me ouvir. Ou seja, o que ela quer é ser vista como uma pessoa ao mesmo tempo sofisticada e compassiva. Mas isso não tem a menor importância, só o que deveria ter aqui é uma explicação de por que ela acha que o autor está errado.

Quando acordei e vi a noticia, liguei pra minha irmã e senti um alivio quando seu namorado atendeu e falou que eles estavam em casa dormindo, nem sabiam o que tinha acontecido naquela madrugada. Vi todos os meus amigos de Santa Maria desesperados atras de seus amigos, de seus vizinhos, colegas de infancia. Vi seus pais agradecendo a Deus por seus filhos não terem ido aquela boate naquela noite.

Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu...

Quem não morava em Santa Maria parou para pensar como são as boates que eu frequento e a maioria viu que poderia ser qualquer um de nós ali, mortos em 5 minutos, por não termos mais ar pra respirar, porque não conseguimos achar a saida, porque nossos olhos não conseguem mais enxergar. Talvez seja eu, não sei, mas foi dificil dormir ontem a noite, a imagem daquelas pessoas desesperadas, fico imaginando e SE… se tivesse mais uma saida, se a porta fosse maior, tivessem exaustores, janelas nos banheiros, extintores que funcionassem, se eles tivessem conseguido controlar o pânico, se abaixar como é dito pra fazer em caso de fumaça… Eu fico pensando E SE… quantas pessoas poderiam ter saido dali com vida… Também penso na dor desses pais e no trauma desses jovens sobreviventes, que se salvaram, mas tiveram que deixar amigos pra tras, que viram pessoas morrerem em seus braços, viram um mar de vidas acabadas ali, bem na sua frente.

Resumindo: a vida é um filme, e você é o personagem principal. Certamente você já reparou que conhece um monte de gente que sofre da mesma condição narcísica: "se eu tivesse estudado mais", "se os políticos não fossem corruptos", "se ela soubesse o quanto gosto dela", etc...Sim, se minha tia tivesse um pinto ela seria meu tio. Olha, tragédias acontecem toda hora. Isso foi só mais uma. Sim, foi péssimo, minhas condolências pras famílias das vítimas, etc, mas meu Deus, se eu for postar alguma coisa cada vez que alguém morrer sem ser de velhice (outra coisa que não existe, mas enfim), vou passar o dia fazendo isso. Essa tragédia em particular é cativante porque as pessoas podem se imaginar se safando, fazendo as coisas certas, salvando vidas, e tudo mais. Mas é aquela velha história: todo mundo acredita que sobreviviria ao apocalipse zumbi.

Cada pessoa no meu facebook que eu vejo prestando homenagem ou desejando condolências eu realmente acredito que, assim como eu, elas desejam paz para todas essas pessoas que morreram ou que hoje choram pela ausência de alguém querido. Eu realmente acredito que por menor que seja o seu pesar, o seu sentimento, boas energias somadas poderão aos poucos confortar essas pessoas que tanto precisam de paz.

Eu também acredito nisso, uai. Que tipo de filho da puta não desejaria paz pras vítimas e suas famílias? Quem é que fica mandando energias negativas pra que as pessoas sofram mais? A diferença é que eu não sinto necessidade de transmitir isso publicamente, porque não é o post no Facebook que vai fazer a diferença, é a intenção, que é puramente abstrata e não precisa de mais ninguém. Fica claro que a pessoa não entendeu o que o Lucas tava falando: sim, com certeza você sentiu empatia pelas vítimas e tal, mas desde quando isso quer dizer que todo mundo precisa saber (o que já é meio óbvio se você não é um psicopata)?


III.

"Tenho certeza que ele está num lugar melhor."
"Sério, por que ninguém me falou antes?! Agora posso voltar ao normal!"

Imagine a situação: você chega em casa, e sua mãe te fala que o pai do Fulaninho morreu de cirrose/sífilis/cocada na cabeça. Vem aquela sensação péssima: putz, que terrível, não consigo nem imaginar isso acontecendo comigo, queria poder ajudar o Fulaninho. E você pode, mas não da maneira que você pensa.

Agora é o funeral. Todos tristes, ninguém sabe muito bem o que dizer, rola empatia mas rola um certo desconforto também. Nunca te ensinaram como se comportar em tal situação, e seu avô morreu quando você tinha 5 anos, então você nem se lembra como é direito. Você se sente super mal e quer ajudar, mas não sabe direito como. Nesse momento, você avista o Fulaninho sozinho, chorando. Como você não tem ideia de como agir, você se volta ao que você conhece: filmes, desenhos, etc.

Nos filmes as pessoas sempre vão fazer alguma coisa pela pessoa que sofre, algo que as faz sentir melhor. Mas acho melhor já estourar sua bolha aqui: nada, absolutamente nada que você disser vai fazer ela se sentir melhor. Que isso fique bem claro: se alguém perder uma pessoa próxima e não se sentir triste, algo está errado. Isso é a resposta natural e necessária a qualquer perda do tipo (por exemplo, um término: quando sua namorada terminou com você, você nada mais sentiu do que luto pelo relacionamento). Só que você não sabe lidar com o sofrimento alheio, porque seus pais passaram toda sua infância tentando fingir que o sofrimento não existe ou que ele pode ser evitado ou prevenido.

Acho que a essa altura do campeonato a vida já deve ter te ensinado que a coisa não funciona bem assim. Mas pensa bem: alguém conseguiu acabar com aquele aperto no coração? Não. Mas você acha que tem que dizer alguma coisa pro Fulaninho, que você é um escroto se não for lá e der seus conselhos amadores e gestos semi-automáticos. É isso que uma Pessoa Que Liga faz, e você é uma Pessoa Que Liga. A realidade que não há nada, de fato, que você possa fazer, é mascarada para tentar evitar um sentimento pior que o sofirmento-por-empatia: a falta de poder. O que te dá agonia não é a morte do pai, nem as lágrimas do Fulaninho: é que não há nada que você possa fazer, e isso vai ao contrário do que te foi dito pelos seus pais, professores, tios, e tal.

Qual é a resposta apropriada então? "Fulaninho, sinto muito por sua perda. Se você precisar de qualquer coisa, não hesite em me ligar." Ponto. Final. O sofrimento da pessoa é da pessoa. É ela que sente, é ela que tem que lidar com isso. Isso não quer dizer que você a deva rejeitar: se ela quiser falar com você, chorar no seu ombro, você cancela seus compromissos do dia. Também não quer dizer que você não deve ficar preocupado se o Fulaninho ainda tiver remoendo a morte depois de 3 anos. Mas além disso, não há nada a se fazer a não ser dar tempo ao tempo.


IV.

Pra fechar, vale voltar àquela palavra "luto". Às vezes vale dar uma olhada mais concentrada num conceito pra entendê-lo melhor. Aqui vai uma definição:

s.m. Profundo pesar causado pela morte de alguém.

Ou seja: o luto é um sentimento, uma coisa particular, que só quem sente vai saber como é. Quando ocorre uma morte à sua volta (e Santa Maria é bem longe, se liga), seu reflexo é de querer ajudar de alguma maneira, e não há nada de errado com isso. Mas por favor, se você quer ajudar, vai fazer uma doação, faça uma prece, um pentagrama, sei lá. São coisas que realmente podem trazer um ganho qualitativo, se não pras vítimas, pra possíveis futuras vítimas ("Mas prece não traz ganho qualitativo!" Ah é, você é perito em religião por ser ateu, foi mal). O que não faz diferença nenhuma é postar no Facebook que você se sente mal pela tragédia, ou falar pro Fulaninho que vai ficar tudo bem, que o pai dele era ótimo.

Não posso saber o que você sente de fato ou não, portanto não posso te julgar com base nisso. Mas sentimentos são, ahn, sentidos, e se você sente (ahá) necessidade de transmitir ao público o que você tá sentindo sem que o público tenha pedido, talvez você seja um narcisista.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Ausência de fatos não compromete matéria de jornal

I.

"Espelho, espelho meu, quem sou eu?"

Tá, saiu uma matéria no Correio Braziliense, e no site só tem uma prévia, mas nessa prévia tem tudo que a gente precisa. Lembre-se, saiu no jornal é Verdade (ok, não sei quem tá lendo, então só pra deixar claro, não, não é Verdade, é verdade, e se você não percebe diferença, faz bem meditar um pouco sobre o assunto). Essa matéria nos diz, essencialmente, que não são necessários dois pais para uma criança crescer saudável (o que isso realmente quer dizer, só Deus sabe). Suponhamos que o estudo seja representativo...

...não, isso não funciona. O estudo é pura prestidigitação (o que palhaços como David Blaine e Criss Angel fazem). Primeiro, o estudo foi realizado nos Estados Unidos. Talvez você nunca tenha ido aos Estados Unidos, mas deve ter uma noção que você foi criado com valores diferentes que o Jimmy. Agora imagine como deve ser diferente pra Yuhiko ou pro Vijay. Certamente foi diferente pro seu vô, e mais ainda pro vô do seu vô. Ou seja: esses estudos não são universais, como eles querem que você acredite, mas puramente específicos de uma geração de uma zona geográfica/cultural. Se você deixou de pensar no que define o "ser humano universal", eu te perdoo, isso não existe, é um beco sem saída filosófico. Sim, tem arquétipos, mas num nível que está além da nossa existência. Não há arquétipos de carne e osso.

Mas mesmo que fosse feito com gente do mundo todo:

"Após estudar 86 crianças, os cientistas concluíram que..."

Se você leu o final da frase, game over, cara. Um estudo de 86 pessoas não diz nada, a não ser que você conheça essas pessoas. Mesmo se o estudo fosse realmente representativo, ele foi feito nos Estados Unidos e você tá lendo no Brasil. Mas sério, 86 pessoas? Posso pegar 86 pessoas aleatórias no meu Facebook e fazer um estudo com elas, mas eu saberia que ele já teria um viés enorme. Tudo bem, quanto mais gente mais a gente pode falar de verdades (lembre-se, não de Verdade), mas se você tá chegando a conclusões (e ponto final!) com 0,0000000287% da população, talvez você seja um narcisista.

Mas antes de você começar a zoar o cientista, pare pra pensar sobre o fato que é basicamente isso que você lê o tempo todo. O jornal pega um estudo que representa a mensagem que quer transmitir e publica um artigo. Perae, quem disse que o artigo sequer está de acordo com as conclusões do(s) próprio(s) cientista(s)? Uma rápida procura por informações adicionais nos dá esse pequeno dado:

"O estudo não estudou mães solteiras diretamente, e todas as famílias incluíam dois pais."

Isso não contradiz diretamente o título do Correio? "Ausência do pai ou da mãe não compromete o desenvolvimento dos filhos". Ou seja, eles chegaram à conclusão que o fator X tem um efeito Y nas pessoas, sendo que o estudo não considerou nenhum caso X! O jornal, em outras palavras, não quer que você saiba a Verdade: ele quer vender propaganda. E você, ainda pega suas informações com a mídia? Espero que seu filho não seja preso tentando comprar maconha na favela.


II.

Mas, se o cara que escreveu esse artigo (quer dizer, mais provável que tenha sido uma mulher, mas perae, pra que essa raiva? Se você chegar à conclusão que eu sou machista, você não tá lendo o blog certo) tem as bolas de dizer o contrário do que diz o estudo (enviesado e parcial), quer dizer que você tá lendo e acreditando. Por que que ele/a achou que você ia ler isso?

Dá uma olhadinha no começo da matéria. Ele fala sobre três mulheres de idades e situações diferentes, mulheres como você, que têm filho e o cafajeste do marido caiu fora. Mas o que, pelamordedeus, o que que essas mulheres têm a ver com você? "Uma delas é jovem, loira com luzes, que nem eu!" Tá, mas ela tem a mesma religião que você? Veio do mesmo estado? Tem o mesmo emprego? Gosta das mesmas coisas? Claro que não. Essas mulheres tão aí pra você se sentir próximo, pra você se identificar. Por que que um jornal, que supostamente deveria apresentar as notícias objetivamente, tá falando de casos particulares? Pra te dar impressão que o que eles vão falar pode afetar a vida da mulher comum. Ah, por falar nisso, as Casas Bahia tão com uma promoção imperdível!

"Tá, eu sei por que o jornal publicou, mas por que eu tou lendo?" Ora, porque você se sente melhor. Se o seu marido te largou pela secretário, se você não lembra pra quem deu na saída da boate, o Correio tá aqui pra te resgatar e te dizer "não, shh, vai ficar tudo bem, você é forte, você pode..." Eu espero que já tenha ficado claro aqui que os dois pais são essenciais. Sim, você tá pegando a coisa, figuras paterna e materna. Ou seja, sim, é possível criar filhos de boa sem o pai ou sem a mãe, mas você tem que ver que é bem mais fácil quando tem um homem e uma mulher* com a idade certa por perto.

O que a matéria quer que você acredite é que sua situação é não só normal mas "saudável". Ela tá te reassegurando, passando a mão na sua cabeça. Mas não se esqueça que sua mãe também te diria que "vai ficar tudo bem" se você descobrir que tem câncer ou se o seu pai saiu de casa, isso não quer dizer que é verdade. O leitor da matéria, no final das contas, provavelmente não teve pai (presente, eficiente): se você engravida aos 17, sua mãe vai te dizer que tá tudo bem, seu pai vai te dizer que, porra, se prepara, vai ter que pagar o preço da sua irresponsabilidade. Só que seu reflexo é de ler e acreditar na matéria. Ponto pras Casas Bahia.


III.

"O novo diretor da revista gosta de trazer o bichano pro escritório"

Por um lado, isso não quer dizer que os repórteres e editores e tal do jornal estejam fazendo isso conscientemente (mas pode ter certeza que alguns tão ligados), mas por outro, eles sabem exatamente o que estão fazendo. Eles sabem que você nunca vai tentar achar o estudo per se, se é que existe. Eles sabem o que faz você clicar nos links e comprar os jornais/revistas**. Tudo que eles precisam fazer é justificar sua existência.

Voltando ao cenário anterior: você engravidou aos 17. Hoje tá com 20. Você tá tomando café da manhã, e dá uma olhada na edição do Correio que sua mãe ainda assina, tomando seu café no copo de requeijão. De repente, você se depara com uma notícia sobre um estudo americano (se você falar "estadunidense", por favor, vá embora) que diz que pais solteiros podem ter filhos saudáveis (bem, não exatamente, mas é isso que você lê). De repente, não é tão ruim assim que o Jorge trocou você por aquela vadia. O jornal basicamente diz Mães Solteiras = Fodonas. E isso só reforça sua identidade.

Agora, você pode chegar pra sua amiga e falar "um estudo lá diz que filhos não precisam de pai pra ser saudáveis***, meu filho não precisa daquele escrotinho do Jorge". Sua amiga vai entender você, ela sabe que você é forte e que seu filho vai ser alguém na vida (mas será que ele vai saber quem?). Resultado: você se preocupa ainda menos com a função paterna, e num piscar de olhos seu filho tá dirigindo loucasso e destruindo o carro "que ainda faltam 16 prestações".

Presta bem atenção: essa matéria não traz nenhuma informação útil ao leitor. Ela não ensina mães solteiras a desempenhar bem as funções paterna e materna. Ela não diz como a família da mãe solteira pode ajudar a compensar a falta do pai (só que ela pode). Ela não diz como um viúvo pode encarar a situação. É tudo um grande monte de nada, que em vez de gerar uma conversa produtiva, gera renda pra megaempresas e dívida pra você ("porra, mas tava em 8 vezes sem júros, como que eu não ia comprar?"). Aliás, não é bem um nada. É um espelho, só que não é um espelho real, "verrugas e tudo mais", não, é o espelho do Harry Potter, e o que você mais deseja é uma identidade.


IV.

Mas assim, não esqueça, uma identidade não é algo que você descobre. Não é algo que te é explicado nos jornais (e nem nos blogs). Não é algo que se escolhe de um leque infinito. É algo que se vive. A sua identidade é determinada pelas suas ações, não por estudos realizados numa cultura diferente. É o que você faz que conta. Infelizmente, esse tipo de matéria só serve pra reforçar a ideia que a única coisa que você pode fazer que faz uma diferença é compras.

Meu objetivo aqui não é demonisar os coitados dos repórteres não. Não duvido nada que eles acham que estão fazendo um bom trabalho, algo produtivo. A questão é que, não, que isso fique BEM claro, não é legal não ter pai. Sim, certamente a maioria das pessoas não fica bitolada, nem precisa de remédio de tarja preta, mas daqui a pouco você tá achando que é até melhor não ter pai (afinal, homem é tudo cafajeste, né) e seu filho te odeia e você não sabe o que fazer, mas tudo bem, ele é "saudável".






* sim, os gays também podem ser pais, calma, não é a situação ideal mas é certamente melhor que o 3/4 de mãe e 1/5 de pai da classe média comum

** "pô, mas tu não vai falar logo da Veja?" 1. você não lê mais Veja 2. eu me sentiria um hipster curtindo música sertaneja

*** já sabe como funciona o telefone sem fio, né?

domingo, 20 de janeiro de 2013

Sindicato dos restaurantes quer competir com a indústria automobilística

I.

Então hoje eu entro no CorreioWeb, e qual a notícia principal? "Preços sobem até 22% em restaurantes, bares e lanchonetes do DF". Será que algum editor encontrou uma mosca na sopa? Domingo é o dia que o povo mais sai pra comer, e a notícia é publicada às 8 da manhã e é a principal manchete no site.

Mas o problema é que no fundo ele tá fazendo um favor pros restaurantes, publicando numa "notícia" a desculpa do sindicato, porque todo mundo lê o que tá no jornal como sendo Verdade. Veja o que eles dizem:

"Em discurso unânime, donos de bares e restaurantes dizem ser quase impossível não mexer nas tabelas: as variações dependem do tipo de negócio e do tamanho da margem de lucro aplicada pela empresa. Eles elegem como principais vilões as bebidas de maneira geral, a carne, os legumes e as verduras. Reclamam, ainda, da carga tributária de produtos como o vinho (que corre o risco de encarecer cerca de 15% nas próximas semanas) e do impacto da folha salarial, responsável por algo entre 20% e 30% do custo operacional de um restaurante."

Isso é tudo deflexão, que que a folha salarial tem a ver com o aumento dos preços? Vai me enganar que o salário dos funcionários tá aumentando? Mas mesmo se tivesse, aumentaria no máximo no passo da inflação. Tudo isso que eles falam não encobre um simples fato: "Alguns estabelecimentos, porém, chegaram a reajustar os cardápios em até 22%, quase quatro vezes a inflação oficial acumulada nos últimos 12 meses". Ou seja, mesmo se houvesse algum custo a mais além da inflação, isso não justifica um aumento quatro vezes maior. Resumo: os restaurantes aumentam os preços de maneira abusiva, depois recebem simpatia porque botam a culpa no governo, e todo mundo sabe que a culpa sempre é do governo.

Por que os restaurantes aumentaram tanto os preços? Pelo mesmo motivo que o Brasil tem o carro mais caro do mundo: porque você é trouxa e paga.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Santo Lance


I.

"Eu, eu, eu, eu, eu, eu..."

Você deve ter ouvido por aí que um tal de Lance Armstrong usou esteroides pra conquistar um monte de troféus na França. “É uma vergonha pro esporte”, hmm, será mesmo que o esporte liga pra isso? Veja o caso de Barry Bonds, do baseball. Ele é o cara que acumulou mais home runs em sua carreira na história da liga. Mas ah, tem um asterisco ao lado do número (que provavelmente nunca será ultrapassado), ele trapaceou! Sim, tá, ninguém vai falar que o cara é um modelo a ser seguido ou coisa do tipo, mas você parou pra pensar que todo mundo naquela época usava esteroides? Ele era bombado, mas o Barry Bonds acertou mais bolas pra fora do campo do que qualquer um na época. O mérito de um jogador sempre deve ser comparado ao de seus contemporâneos, os esportes e as pessoas evoluem. Mas ele trapaceou, ou seja, ele teve coragem de fazer o que você não fez mas faria se soubesse que ninguém ia saber.

Sim, mas o Lance. Tava demorando pra chegar o mea culpa. “Mas o importante não é que ele admitiu os erros e aceitou a culpa?” Uh, será que ele fez isso mesmo? Você também deve ter se sentido super nobre quando admitiu um erro pro chefe ou sei lá, mas veja bem, você não o fez na frente das câmeras (você é honesto quando te filmam?). E putz, se você precisa de um pouco de simpatia do público, quem melhor pra recrutar que a Oprah? Presta atenção, o Lance não tá lá pra admitir culpa. Nos olhos dele, ele não é culpado. Taí um momento pra refletir sobre a diferença entre culpa e vergonha. Essa entrevista não foi pra ele pedir desculpas pro público ou sei lá como o agente dele descreveu. Essa entrevista foi pra ele poder reconstruir a história dele ao vivo. E você acreditou.


II.

Digamos que você toma uma bomba e ganha um monte de competição, mas no final das contas encontram provas (note que não falei “descobrem que”) que você se dopou. Se você sente culpa, o que você faz? Bom, espero que a garrafa de vodca não seja sua primeira escolha. Na verdade você não faz nada, porque você vai tar se sentindo o maior dos vermes do mundo, você não vai conseguir dormir, você vai começar a chorar no meio do banho. A última coisa que você quer ver é o olho público. Se você já se sente péssimo consigo mesmo, como que você vai lidar com milhões de estranhos te julgando sem te conhecer? Mas não é tarde pra mudar. Depois de um tempo você começa a se reabilitar. Você escreve um diário. Ajuda os vizinhos, etc... O importante é perceber que as pessoas NUNCA vão conseguir te julgar sem viés, então foda-se eles e vai ajudar umas crianças pobres a andar de bicicleta, blz?

Mas o Lance não sentiu culpa. Ele sentiu só vergonha. Vergonha de ter sido pego. Vergonha de ter permitido que descobrissem o segredo dele. Vergonha que ele não era a pessoa que ele dizia ser. Todo mundo achava que o Lance era um cara bacanão. Exemplo de esportista, ele venceu o câncer (sei lá, se o câncer levou uma das bolas dele, quem é que venceu mesmo?), ele ajudou milhares de pessoas com câncer (é, bom, não tem como verificar isso, mas você acredita que o que falta pra cura do câncer é dinheiro, então manda brasa). Mas aí veio o doping, e todo mundo viu que ele era fake. A sorte aqui é que ele não apelou pra boa e velha raiva, porque isso é uma puta duma ferida narcisística. É isso que descreve o momento que alguém ou alguma coisa estilhaça a imagem que o narcisista criou com tanto cuidado, e se você tiver por perto, tome cuidado. A solução: “olha, Oprah, eu não sou mais o tipo de cara que faz isso.”


III.

"Pronto, esse ângulo tá melhor."

No Correio:

“Em seguida, Oprah perguntou se Armstrong "viveu uma grande mentira". Em resposta, o ciclista afirmou que "era uma história perfeita, mítica. E não era verdadeira". "Fiz as minhas próprias decisões. Foram meus erros. Estou aqui para pedir desculpas", disse.”

A grande mentira aqui não é a carreira dele, é essa entrevista. Veja como ele mesmo descreve o episódio todo como uma “história mítica”. Você até começa a acreditar que nada disso aconteceu, que aquilo tudo foi um filme de Sessão da Tarde. Sim, Lance, não era uma história verdadeira, mas esse lero-lero aí também não é verdadeiro não. Eu acreditaria que você tá sendo honesto se você dissesse algo do tipo “sim, eu sei que trapacear é feio, mas todo mundo fazia naquela época, e se eu não tomasse bomba eu sempre ia ser um João Ninguém” – e bom, deu certo, vai demorar pra gente esquecer ele. Mas se ele dissesse isso todo mundo ia achar ele um babaca apesar do fato que muita gente faria (e fez) exatamente a mesma coisa.

Guarda essa faca, eu não tou dizendo que ele tem razão. Ele foi um babaca por ter se dopado. Ele devia saber que o objetivo do esporte não é ser coroado príncipe do mundo, é fazer o mais esforço possível dentro dos limites impostos pelo próprio esporte. A questão é que ninguém espera que ele seja honesto. Todo mundo já decidiu que é um ladrão, um trapaceador. E já que ninguém espera honestidade, ele não vai ser honesto, porque seria mais um choque pra audiência. Veja bem: nada da vida do Lance é verdadeiro. Mas enquanto alguém acreditar em alguma coisa, ele vai continuar a falar.

"Em alguns momentos, ficou com lágrimas nos olhos na entrevista que deveria bater recorde de audiência nos Estados Unidos. Armstrong, porém, quis deixar claro para Oprah que não usou doping quando voltou a competir a Volta da França em 2009 e 2010. Nestas duas competições, ele não venceu, mas conquistou um terceiro lugar. Segundo ele, nos anos em que foi campeão seria impossível ter ganho sem o uso de doping."

Lágrimas de crocodilo, é claro. "Olha, tudo bem, eu fiz merda, mas eu parei de fazer merda tá, agora eu sou um cara bacana!" Aqui ele menciona que seria impossível ter ganho sem doping, ou seja, terceiro lugar é praticamente campeão mesmo, ou será que ele realmente acha que o esporte mudou completamente dois ou três anos?

O Lance também diz que quer liderar por exemplo (afinal, você ainda acredita que ele é um líder). Mas perae, exemplo de quê? Se ele quis dizer exemplo de uma geração (ou duas ou três) cuja patologia dominante é o narcisismo, então bingo, mandou bem! Ao ler o artigo, me perguntei se o Lance teve um pai alcóolatra ou bunda-mole. Surpresa! A mãe o teve aos 17, o pai biológico largou a família quando ele tinha 2 anos, ele foi adotado aos 3, e o pai adotivo divorciou a mãe quando o Lance tinha 17 anos.

"Mas eu já te falei que fui muito bem educado apesar do meu pai ter perdido a batalha contra o vício". Sim, ouvi dizer que o rum tem um baita dum gancho esquerdo. A figura do pai é importante porque é ela que vai permitir que a pessoa internalize o super-ego. O pai, basicamente, tem que ser o Capitão Nascimento* pro aspirante a gente. Se o Lance realmente tivesse tido um Pai (pra diferenciar do pai biológico, a gente ainda não conversou sobre Deus), ele teria aprendido que ele tem que ganhar não pra ser amado (sem dúvida mamãe tava lá em todas as corridas), mas porque foi um objetivo pessoal. A pessoa que vai ser considerada um bom compasso moral é aquela que age moralmente, não a que diz que é moral.

"Com todos os seus títulos retirados e banido do esporte, o ciclista insistia na mentira até a noite de segunda-feira."

Não, você que voltou a acreditar nele. É diferente.


IV.

No Tropas Estelares, o livro (faça-se um favor, compre e leia - é claro que um livro desse naipe não tem versão em português), o professor fodão fala pro protagonista imaginar um cenário (parafraseando): imagine que você tá na escola, e tem uma competição de corrida; você até que corre bem, dá umas corridinhas de vez em quando, tal, e chega em 5o lugar; aí, depois da corrida, te entregam um troféu de primeiro lugar. Você se sentiria orgulhoso do troféu? Ia tirar onda? É claro que não: você não mereceu.

"Ué, o Lance não tá tirando onda". Sim, agora que descobriram que ele é uma farsa. O que importa pro Lance não é o troféu de primeiro lugar. O que importa pra ele é que todos vejam ele como campeão (bom, agora como um santo da honestidade), não importa onde ele chega na corrida, nem se ele participou da corrida. Tanto faz se ele ganhar a corrida ou se ele faz uma entrevista com a Oprah: o que vale é que você tá olhando pra ele, e pior, validando ele.

 E isso é revelante, uh, relevante.

V.

Se o Lance não fosse bom de bike...

Sabe quando você tá esperando na saída do shopping e tem um idiota que passa com o carro rebaixado e um som tão alto que você não sabe se é funk ou axé? Se você olhou pra ele e falou como ele é um filho da puta, parabéns, o Lance Armstrong ganhou.





* será que nos filmes ele conseguiu desempenhar esse papel? Ainda não vi o 2, mas em breve veremos se foi um sucesso por causa de identificação ou por causa de pensamento desejoso (é claro que a ideia de wishful thinking sequer existe no português)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Assassinato pós-meditado

I.

Cuidado, ele pode te esquartejar

Uma das "notícias" (o caso começou em março passado) mais lidas no G1 recentemente é sobre o assassinato de uma atriz britânica por seu irmão. Vamos tentar entender não só o que levou a esse crime mas, sobretudo, por que esse artigo é um dos mais populares de um site que todos visitam quando não têm nada pra fazer (sim, tudo bem, você vai dizer que é pra se manter atualizado em relação aos eventos importantes que ocorrem mundo afora - por isso que o que você mais lê o Planeta Bizarro, né?)

Uma olhada no título, "Atriz britânica teria sido morta por irmão após briga por torneira aberta", já nos dá uma informação pertinente: o cara não matou a irmã por causa de uma torneira. Também vão  enfatizar o uso de maconha por parte do irmão. "É o sistema querendo criminalizar uma erva, maconha não leva a violência!" Calma aí, cara, a raiva veio antes da maconha, mas veio do mesmo lugar. Isso tudo tem a ver com uma figura notável por sua ausência - o pai.

Antes que você venha me dizer como você foi criado muito bem apesar do seu pai ser um alcóolatra, que fique bem claro que quando me refiro ao pai, não me refiro necessariamente ao pai biológico, mas a qualquer figura que tenha desempenhado essa função na vida da pessoa. Se isso foi sua mãe biológica, ótimo, mas é meio complicado ela desempenhar duas funções (uma já não é fácil) ao mesmo tempo que trabalha pra te sustentar (sem dúvida algo que você ouve bastante). Enfim, o que interessa é que não consegui encontrar uma biografia da atriz pra ver como era a relação com o pai, mas já podemos adivinhar.


II.

"O caso ganhou destaque na Grã-Bretanha por causa das circunstâncias nas quais a história veio à tona: primeiramente, com a notícia do desaparecimento de Gemma, seguida da detenção de Tony, que havia ido à polícia para registrar seu desaparecimento, e o encontro do corpo desmembrado e espalhado em vários locais."

Hmm, não, o caso ganhou destaque na Grã Bretanha porque os ingleses são como nós: adoram quando a linha entre a realidade e ficção (novelas) fica borrada. Isso não quer dizer que eles sentem um prazer sádico quando a atriz é morta, isso quer dizer que eles o sentem quando o vilão é preso e "paga por seus crimes" (nesse caso é válido porque não acredito que ele vá saber se defender na prisão). Perceba que o que importa é a história. Esse tipo de assassinato acontece no mundo todo todo dia, mas esse caso é popular porque a vítima era uma atriz, e tudo se desenrolou exatamente como aconteceria na novela.

Pense nessa história: "a vítima desapareceu, e o culpado, que havia registrado seu desaparecimento para tentar se safar, tentou esconder o corpo". É por isso que o caso ganhou destaque? Isso já aconteceu milhões de vezes. Esse caso ganhou destaque porque as mídias britânica e mundial deram destaque, e elas fizeram isso porque sabem que você vai querer ler, e eles precisam vender propaganda. Nesse sentido, esse caso não é nada mais que um BBB Vida Real.

"O torso da atriz foi encontrado no dia 6 de março do ano passado no Regent's Canal, canal que liga o Parque Olímpico, no Leste de Londres, ao Regent's Park, cortando alguns dos mais importantes cartões postais e bairros ricos de Londres."

Por falar nisso, a TTT Turismo está com uma promoção de pacote pra Londres imperdível, 10x sem juros pra você e um acompanhante poderem contar pros seus amigos como lembraram da coitada da atriz quando passeavam pelos "cartões postais", é triste saber que coisas tão horríveis acontecem num país tão culto e civilizado (ainda bem que o ônibus do tour não passou perto do estádio depois do Chelsea perder pro Arsenal).

Mas você não vai questionar a estranha menção dos "bairros ricos", afinal já tá se imaginando lá, fazendo pose do lado do guarda, indo ao British Museum e fingindo que aquilo vai automaticamente te tornar uma pessoa mais inteligente (não, não vai). Mas perae, não tinha um torso nessa história?

"Mais partes do corpo, desde então, vinham sendo removidas do canal, embora a polícia somente tenha achado a cabeça da atriz meses depois, em setembro."

Ela foi encontrada no artigo da BBC que todos os outros canais ao redor do mundo compartilharam. Sério, só eu acho estranho botar uma foto da cabeça dela depois de falar que acharam a cabeça decapitada?


III.

Na segunda metade do artigo, que você não vai ler porque tem uma foto grande e ei, um cara na China fez uma parada mó esquisita, a polícia tenta explicar o crime.

"Segundo o promotor Crispin Aylett, havia uma tensão crescente entre os dois irmãos, principalmente por conta do consumo frequente de maconha e skunk (forma mais potente da droga) por Tony."

Primeiro, ignore que o repórter (finge que?) não sabe absolutamente nada sobre maconha.

O que a srta. McCluskie devia saber é que o irmão dela fumava maconha provavelmente pelo mesmo motivo que ela virou atriz - um pai (arquetípico) ausente. Mas também não ache que isso é psicologia popular, não tem nada a ver com o fato que ninguém avisou pra ele/a que maconha/vida de atriz é "perigoso". Todo mundo tá careca de saber isso. Não, o problema aqui é que o pai criou (nada reprsenta uma cultura como sua escolha de palavras) um filho narcisista. "Mas você não sabe que ele era egoísta/megalomaníaco." Realmente, mas isso não é narcisismo.

O narcisista é aquele que não se preocupa em agir de acordo com alguma essência moral, alguém para o qual o que importa é a imagem que ele transmite. Ele é o personagem principal e todos os outros são coadjuvantes. Não podemos dizer se Gemma era narcisista, afinal, por mais que sua carreira seja na TV, ela realizou coisas na vida. Por mais que seja uma novela, uma carreira requer uma certa consistência de esforço. O que não requer esforço é fumar maconha às custas da irmã.

Calma, Cheech, o problema não é fumar maconha. O problema é fumar maconha como substituto para, simplesmente, fazer alguma coisa, ou melhor, fazer coisas. Certamente era suficiente para Tony que ele era irmão de uma pessoa (relativamente) bem-sucedida. "Ah, no pior dos casos minha irmãzinha me ajuda." O problema é que o pior dos casos já devia ocorrer há anos. Claro, ele poderia ter sido demitido recentemente, os tempos são de recessão, mas não há nada que indique isso. Não acho que você vá encontrar muitos tipos financeiros curtindo um baseado (eles preferem pó).

O que determina sua identidade não é quem você diz que é, é o que você faz. Pode ter certeza que o Tony tinha mil projetos pra vida. Por ter certeza também que a irmã já tinha reclamado várias vezes que ele só falava e não fazia nada. Por que então que ele estourou dessa vez? Comparar com o álcool seria injusto, então é suficiente deixar claro que maconha aumenta muitas coisas, sensações, palas, gostos...mas a raiva não é uma delas (valeu Robin). Não se engane: não tem nada a ver com a maconha, e nada a ver com a irmã. A dica tá aqui:

"Tony McCluskie, de 35 anos"

Quando se está ainda nos 20 e tantos anos, o mundo ainda é cheio de possibilidades. Ainda há energia vital e bastante tempo pela frente. Aos 20 e tantos, você ainda acredita quando diz que daqui a pouco vai parar de fumar e fazer alguma coisa "produtiva" na vida. Aos 35, é mais difícil.

O que aconteceu com o Tony foi que ser expulso do apartamento da irmã significava que ia ter que arranjar um emprego, começar um negócio, alguma coisa. Mas ownar neguinho no Call of Duty não é uma habilidade desejada pelo mercado. Você não precisa ser Carl Jung pra perceber que a "gota d'água" (o que é linguagem e o que é realidade mesmo?) foi altamente simbólica. Doía toda vez que o Tony era chamado de maconheiro, porque ele sabia que ele era um cara criativo/empreendedor/etc. Mas ele não podia sair batendo na irmã ou nos pais, senão os outros perceberiam que ele é um cara raivoso (veja mais uma vez como são suas ações que determinam sua identidade, não o que você fala). Evidentemente, ser expulso de casa destruiria qualquer imagem que ele tinha conseguido preservar até então.

A raiva é a consequência natural do narcisismo. Isso não quer dizer que temos que condenar todos os narcisistas pro inferno. Os adolescentes são narcisistas por natureza, é uma etapa necessária do desenvolvimento. No entanto, é uma etapa, ou seja, precisa ser ultrapassada. O objetivo do narcisismo na adolescência é permitir que a pessoa crie uma identidade própria, testando máscaras diferentes até achar a que caiba. Então se a sua filha de 16 anos fuma maconha/ouve black metal/usa roupa de marca, relaxa, larga esse martelo, ela só faz isso porque você não gosta.

Eu sei que a notícia é da Inglaterra, mas o site é brasileiro, e você tá lendo. Quem não leu o artigo e pensou que o cara é um louco? Sim, é óbvio que ele é doido, mas isso é só uma desculpa pra não pensar no caso, "eu não sou maconheiro, não sou pirado que nem esse cara". Por acaso, o próprio Tony já deve ter dito isso várias vezes, bom talvez às vezes "não sou pirado como vocês pensam". Essa notícia deveria ser um aviso: o Ministério da Saúde adverte, se preocupar com sua imagem e não com sua essência causa raiva, que pode se manifestar de diversas formas. E você, acredita em quem vê no espelho?




V.

"Segundo o relato do promotor ao júri, Tony tentou criar pistas falsas ao enviar uma mensagem ao celular da irmã no dia seguinte ao suposto crime, no dia 1º de março, para fazer aparentar que ela ainda estava viva.

Ele depois registrou seu desaparecimento à polícia, que com base nos detalhes passados por ele, categorizou o caso como de baixo risco.

Tony também disse à polícia que um ex-namorado devia dinheiro a ela e que as autoridades deveriam falar com ele."

Vejam bem como ele tenta construir uma história, criar uma meta-narrativa. "Eu não sou o tipo de cara que faria isso, quem faz isso é aquele ex safado dela". Felizmente, a lei ainda dá mais peso aos fatos do que aos testemunhos, mas sabe-se lá quanto tempo isso ainda vai durar.

A cereja no bolo é quando Tony diz que não premeditou o crime (eu acredito, tente fazer um plano coerente depois de fumar n baseados como nosso amigo aqui) mas que não se lembra de nada. Sim, eu acredito que o cara que bebeu 10 vodkas com energético não lembra de nada no dia seguinte, mas se ele passa a manhã preocupadamente deletando mensagens e fotos e rezando pra que ninguém tenha postado nada no Facebook, eu começaria a ter minhas dúvidas.

VI.

Não, eu não sou psicólogo, nem repórter nem nada, mas isso não é motivo pra você quebrar essa garrafa. Eu espero que fique claro que eu não tenho nenhuma pretensão de que "todos vejam a Verdade". Não, não há Verdade. Eu posso estar completamente enganado, e a mídia pode ter distorcido a história até nos detalhes. Mas isso não interessa. Os fatos do caso, a real patologia do Tony, só interessam à família e aos amigos da vítima e à polícia. O que me interessa é a história que você tá lendo.

Sim, tudo isso é meio nonsense. Eu sei. Acabei de falar: o que interessa é a história, e não um ponto de vista absoluto a se ter em relação à história. Dane-se se você acha que o Tony é vítima de abuso de drogas, que isso é um crime que chocou uma nação, blablabla. Dane-se por quê? Porque a mídia já me diz isso a qualquer oportunidade, e repetir o que o repórter/tradutor da Globo disse não é debate nem aqui nem na China (bom, talvez na China). O que eu quero é que você tenha mais de uma perspectiva, e no fundo não importa qual é, e que você nunca esqueça que você é o que você faz.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Cotas raciais não são um problema de raça


I.

Tiago se depara com uma opinião contrária à sua

Se formos escolher um assunto polêmico, uma das escolhas óbvias é a discussão sobre cotas raciais nos vestibulares e, mais recentemente, nos concursos. Os que são a favor dizem que são medidas necessárias para que se corrija os erros cometidos pela escravidão, e os que são contra repetem que isso é apenas dar continuidade ao racismo, e que o nível nas universidades cairá. Qual lado, afinal, tem razão?

Se você respondeu essa pergunta, você caiu na armadilha. O fato de ser a favor ou contra cotas é absolutamente irrelevante porque você já aceitou a forma do debate. Você já aceitou que é um assunto polêmico (de acordo com quem?), que é um problema de raça (quem só tem antepassado de uma ‘raça’ que atire a primeira pedra), que é o governo que vai resolver prum lado ou pro outro (“papai vai cuidar de mim!”). Você não questionou nenhuma das minhas premissas, e deixou que eu controlasse a questão.

Acho bom você começar a pensar sobre isso, porque a mídia e a publicidade fazem isso com você todo santo dia.

No final das contas, ninguém questiona se a discussão das cotas é uma discussão que vale a pena se ter. Ninguém toma uma distância objetiva para julgar o mérito não só dos dois lados, mas da própria problemática. Ao discutir os prós e os contras das cotas, você está deixando de discutir os méritos do vestibular, do sistema educacional brasileiro, de um diploma universitário. Você cedeu a uma redução arbitrária, e perceba que esse é exatamente o problema do próprio conceito de raça: a tentativa de se reduzir algo infinitamente complexo a grandes categorias que não dizem nada sobre a personalidade ou o caráter da pessoa.

Vejamos como isso se aplica no caso das cotas.

II.

Uma premissa que é inconscientemente aceita é que a universidade automaticamente melhora a condição básica de um indivíduo. Vários irão dizer que estudos comprovam que quem tem ensino superior tem uma renda maior. Mas perceba que há uma causalidade implícita onde há apenas correlação. Poderia dizer, e seria igualmente válido, que pessoas que se esforçam mais têm maior probabilidade de ter diploma e, ao mesmo tempo, uma renda maior por serem esforçadas. Isso é uma charada, uma ilusão de ótica.

O que acontece é que as pessoas confundem o ideal de universidade com a realidade da universidade. As pessoas imaginam que irão à faculdade, e irão absorver conhecimento (note que educação quer dizer, semanticamente, “trazer para fora”), adquirir pensamento crítico, etc... Certamente muitos irão adquirir conhecimentos técnicos (médicos, advogados...) necessários à sua função, mas a maioria, sobretudo nas humanas, irá simplesmente ficar regurgitando ideias de outras e tentando agradar o professor e atingir o conceito dele de “verdade”. Por que que médicos e advogados, por exemplo, são mais bem-vistos e bem-pagos (independente dos méritos de cada indivíduo) pela sociedade? Não é por que seus empregos são “mais importantes”; isso é uma noção elitista. Seria realmente pior viver numa sociedade sem coletores de lixo do que numa sociedade sem médicos? Os médicos poderiam desempenhar seus papeis sem enfermeiras, sem secretárias, sem faxineiras, sem seguranças? Não. O valor inerente do médico e do advogado se encontra no fato de que são profissões que por definição requerem uma grande quantidade de esforço. Sim, você pode virar um vagabundo depois de se formar em medicina (será?), mas nesse caso o rótulo de “médico” não se aplica mais a você. O médico recebe mais dinheiro porque, por mais que a secretária seja essencial, é mais difícil ser médico do que secretária. Requer mais sacrifícios, requer mais força de vontade, requer mais proatividade. Infelizmente, um resultado disso é que o campo tende a atrair pessoas que se esforçam não para curar, mas para atingir o status de “médico”.

Outra “verdade” implícita é que o vestibular, independente de cotas, é uma maneira adequada de se medir a afinidade da pessoa para a vida universitária. Preste bem atenção nas palavras que usei aqui. Os ramos acadêmicos são apenas uma parte da grande estrutura da sociedade (que é fisicamente construída por pedreiros, diga-se de passagem), e, do mesmo modo que certas pessoas possuem afinidade para esportes, certas pessoas possuem afinidade para a academia. Veja bem que, ao ditar a necessidade da universidade, você está dizendo subtextualmente que a universidade é melhor que a não-universidade. O vestibular, pra que não haja nenhuma dúvida sobre o assunto, é uma FARSA. É uma prova que mede sua capacidade de memorizar fatos e aplicar fórmulas. Agora quero que você me encontre um emprego cuja função principal é memorizar fatos e aplicar fórmulas. “Ah, mas ele vai aprender pensamento crítico e essas coisas na universidade!” Se ele não aprendeu pensamento crítico na escola nem em casa, você realmente acha que ele vai aprender numa estrutura hierárquica como a da universidade? O Brasil, por mais que se veja como estando na vanguarda da pedagogia, é um dos poucos países mais desenvolvidos que ainda adota uma prova de V-ou-F e múltipla escolha como único critério de entrada em universidade. E agora pense: você já viu alguém, que concorde ou discorde de mim, falando do assunto nesses termos, na televisão ou no jornal?

E lembre-se que isso tudo é encoberto por essa meta-discussão sobre cotas. Enquanto você posta uma citação de outra pessoa no Facebook mostrando como você é progressista/feminista/humanista, o cara que passou a adolescência aprendendo a fazer uma prova não sabe o que fazer quando se depara com um debate sobre a Alegoria da Caverna, ao mesmo tempo que o cara que monta baterias no quintal com laranjas e um alicate fica frustrado por não ter chegado perto de passar em Engenharia.

Mas afinal, isso não é uma discussão sobre o vestibular. Isso fica pra outra hora. Isso também não é uma discussão sobre cotas. Isso é uma discussão sobre você.

III.

Digamos que você tá no Facebook, e sua amiga feminista compartilhou um artigo do Estadão que diz que cotistas têm melhor desempenho na faculdade que não-cotistas. “Po, que bacana, as cotas realmente tão funcionando.” Sua vez de compartilhar. Mas será que você leu mesmo? Tá, tudo bem, você clicou no link. Foi além do terceiro parágrafo? Descobriu se o estudo foi realizado com controle, em mais de um local, de maneira objetiva? Se questionou se há relação entre notas altas e sucesso na vida (não se esqueça de definir sucesso)? Tentou descobrir qual é o viés da reportagem e o do jornal? Pesquisou para ver se há outros estudos que contradizem o do Estadão?

Se você o fez, ótimo. Mas a probabilidade é que você tenha compartilhado o artigo não para transmitir informação, mas para transmitir uma identidade. Quando você posta o link, o que as pessoas vão ver não vão ser novos dados, novas perspectivas. Elas vão te ver como progressista, elas vão ver como você tem razão porque a “ciência” está do seu lado, elas vão ver que você se importa com os pobres e oprimidos. Você realmente acredita que vai mudar a opinião de alguém sobre o assunto? Você vai meramente reforçar não só a sua própria identidade, como irá reforçar a identidade de todos aqueles que ou concordam com você ou te odeiam (mas é claro não tanto quanto você odeia a “injustiça”).

“É claro que não, seu idiota, eu tou defendendo a igualdade!” Sério? Você, compartilhando citações, está fazendo algo para mudar a situação? Não acho que o menino que acabou de perder o pai pro tráfico se importa muito com seu status no Facebook.

“Mas você espera que eu vá pra favela dar dinheiro pros pobres?” Claro que não. O que eu espero é que você não tenha ilusões de que o fato de você compartilhar (que palavra bonita, né) o que você acha (leia-se: o que leu, de outra pessoa) sobre o determinado assunto faz alguma diferença fora do mundo das imagens. Na prática, você não fez nada.

Agora, não entenda isso como acusação. Eu também não fiz nada. O que importa é que você entenda por que que você é a favor ou contra cotas, e lembre-se, esses motivos não têm nada a ver com lógica e racionalidade. Por que que você sentiu raiva quando viu aquele cara que você conheceu no churrasco falar que era contra cotas porque cotas é racismo? Por que que você ficou orgulhoso quando convenceu seu pai a ser a favor das cotas?

Por que que você liga quando uma pessoa que não enxerga além do próprio nariz diz que acha que cotas são uma burrice/uma necessidade?

É tudo muito simples. No fundo, o que importa não é validade dos seus argumentos, mas como os outros vão ver você dependendo de que lado da questão você está.

IV.

Por falar em outro lado da questão... vamos sair um pouco da nossa própria realidade (difícil, eu sei), e vamos tentar ver como o negro pobre vai ver essa situação toda. Ele provavelmente vai interpretar as cotas em uma de duas maneiras: ou vai entender “o sistema está tentando maquiar uma injustiça sistêmica (er, não nessas palavras, ele se revoltou contra a escola muito tempo atrás) e eu não vou participar dessa palhaçada” e vai voltar a cuidar da loja ou a pichar o muro da loja; ou, na maioria dos casos, vai entender (inconscientemente, por favor) “está claro que você não está apto para sair do buraco por causa dos brancos ricos/educação pública péssima/falta de recursos, então aguenta aí enquanto os brancos ricos resolvem o problema” e vão continuar cedendo à autoridade. Sim, é paradoxal, mas onde há um paradoxo há um núcleo de significado.

É muito difícil para as pessoas aceitarem que motivação extrínseca é no máximo temporária. De que adianta botar o cara na universidade se ele vai sair de lá achando que é o estado que vai resolver todos os problemas dele? Aposto o que você quiser que esse mesmo cara vai se mudar pra Brasília pra estudar pra concurso, que aliás já vai ter cotas também.

Não se discute um alívio da carga tributária/burocrática para pequenos negócios, se discute cotas. Não se discute taxas de juros e subsídios para microempresas, se discute a escravidão – aliás, como se fosse um fato histórico e não um fato moderno: se você só tem dinheiro pra comprar comida e mora num barraco, como que sua vida é diferente da de um escravo?

A “controvérsia” sobre as cotas é fabricada (dificilmente de maneira consciente, calma lá) pra mascarar os problemas endêmicos*. É uma conversa que muda o foco da discussão do pobre negro pra você. O que vale é como você se vê e como os outros te veem, e nosso caráter é um mero zero à esquerda. “Não doei nenhum dos meus 13 casacos, mas pô, eu sou super a favor de cotas!”

Veja bem, isso não quer dizer que você seja uma pessoa imoral. Isso quer dizer que a sua opinião sobre as cotas deveria ser uma consequência natural da sua moralidade, não uma faceta da sua identidade a ser construída através de estudos “científicos” e citações populares. Se você realmente quer fazer uma diferença, não diga que é a favor de cotas e espere o governo resolver o problema – vá ser tutor de um menino pobre, vá fazer campanha na sua comunidade (ou faça algo para que o conceito de comunidade volte a significar alguma coisa), vá abrir a mente de outros, vá reformar a escola, vá e FAÇA!

A satisfação é proporcional ao esforço, então não espere uma sensação de dever cumprido quando ver o cara pegando dois ônibus xexelentos por três horas pra ir pra universidade descobrir que a professora viajou pruma palestra no Chile e ele não vai ter aula hoje.

V.

O professor e juiz William Douglas está aqui para nos dizer que ele é um cara super bacana porque agora ele é a favor das cotas pra negros e índios**. Ele começa seu discurso sobre como salvar o mundo pelo único começo lógico: ele mesmo, é claro:

“William Douglas, juiz federal (RJ), mestre em Direito (UGF), especialista em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ), professor e escritor, caucasiano e de olhos azuis.”

Todo o primeiro parágrafo nada mais serve para estabelecer a sua própria identidade diante de sua plateia virtual. Aqui ele já estabelece credibilidade (ele é juiz, professor e escritor – mas você sabe o que ele julgou, professou ou escreveu?) além de estabelecer que é branco (implícito: “apesar de ser branco, não sou racista”***). “Ouçam-me porque esses pedaços de papel dizem que minha opinião é válida nos olhos da sociedade.” Mas tem mais:

“Quem procurar meus artigos”

Fica a dica ;)

“Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos.”

Não esquece que eu sou juiz, então você não pode questionar essa opinião, tá?

“Não me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos...”

Repito porque meus sentimentos que importam!

“Por isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como homem, cristão, cidadão, juiz, professor, "guru dos concursos" e qualquer outro adjetivo a que me proponha.”

Além de ser juiz e cristão (leia-se: pessoa de moralidade), sou um guru!

“Mesmo sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular "para negros", aceitei convite para aulas como voluntário naquela ONG...”

Minha ideologia é válida porque eu faço caridade! (por ‘caridade’ entenda-se ‘ensinar aos pobres como entrar no sistema – regra número 1: não questione o sistema)

"Meu pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de "chão de fábrica", fui pobre quando menino, remediado quando adolescente.”

Eu fui pobre, eu sei do que tou falando! Sua opinião de rico não vale!

“Nada foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem fácil.”

É bom o Deepak Chopra se ligar que a concorrência tá chegando! Viu como eu tenho razão, tantas pessoas me ouvem!

“Mas tive heróis que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros, do Supremo à portaria de meu prédio.”

Viu como eu não discrimino?

"Minha filha, loura e de olhos claros...”

O nome dela? Não importa, ela é minha filha!

E por aí vai. Aqui encontramos o que é pra ser uma discussão sobre os méritos do sistema de cotas, eu tudo que consigo ler é EUEUEUEUEUEUEUEU. Esse artigo não foi publicado para trazer algo à discussão empírica, ele foi publicado pro autor mostrar como ele é inteligente e humanista. O que interessa aqui são apenas imagens: a imagem dele de juiz, de branco (desculpa, “caucasiano”), de bom pai, de pensador, de conhecedor.

Esqueça lógica: você tem que ser contra cotas porque esse advogado branco passou um tempo dando palestra pra pobres, o que mostra como ele entende do assunto. Ele descreve que resolveu “passar um dia na cadeia” (metáfora de um cara que já morreu) para entender como é do ponto de vista dos pobres. Que ser humano! Veja como ele sofre com os pobres:

"Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e negros, onde se vê a esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos que são contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde num cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola, psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de todas as matérias no ensino médio.”

Perceba que independente do resultado, fica implicado que não é o pobre que vai se ajudar – ou ele precisa de psicólogo e curso de inglês, ou ele precisa de palestras e cursinhos. Isso tudo é apenas um meio de aliviar a culpa branca de classe média: “estou fazendo minha parte!” Ah, é você que vai resolver, ufa!

Tem muito mais o que falar, mas eu convido você a ler o artigo e ver por si mesmo –desconstrua-o e pergunte-se: o que o autor quer que seja verdade? No entanto, há um último pedaço que não posso deixar passar...

“Se alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao nazismo.”

E agora, quem vai falar pra ele que os nazistas também usaram cotas raciais?

VI.

“Mas afinal de contas, cotas é bom ou não?” Hah, não, valeu, não vou cair nessa. O problema não são as opiniões a favor ou contra, mas a motivação por trás dos debates. Não deixe os outros tomarem as rédeas do discurso. Em vez de postar uma citação, desenvolva sua própria ideia. Em vez de debater o mérito das cotas, debata o mérito do sistema. Pense não só em por que a pessoa tá divulgando aquele estudo, mas por que você adorou/odiou o artigo. Considere se é um discurso que vale a pena. Em vez de falar, FAÇA. A sua identidade não é determinada pelas ideologias com a qual você se alinha, mas pelas suas ações concretas.

O problema não é o racismo. O problema não é o sistema. O problema é você.





* é o mesmo que o prefeito que manda repavimentar as ruas da cidade (com asfalto barato) pra fingir que “está preparando a cidade pra copa”, enquanto o sistema de transporte público continua ultrapassado e malfeito – “ah, mas o prefeito Fulano tá fazendo alguma coisa, o anterior não fazia nada!”

** outro ponto que ninguém lembra: cota pra índio nada mais diz que “bah, esse estilo de vida dos índios não é legal, eles precisam da universidade dos brancos (“e em breve negros!”) pra serem alguém na vida.”

*** então por que se classificar como branco?
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