I.
"Eu, eu, eu, eu, eu, eu..." |
Você deve ter ouvido por aí que um tal de Lance
Armstrong usou esteroides pra conquistar um monte de troféus na França. “É uma
vergonha pro esporte”, hmm, será mesmo que o esporte liga pra isso? Veja o caso
de Barry Bonds, do baseball. Ele é o cara que acumulou mais home runs em sua carreira na história da
liga. Mas ah, tem um asterisco ao lado do número (que provavelmente nunca será
ultrapassado), ele trapaceou! Sim,
tá, ninguém vai falar que o cara é um modelo a ser seguido ou coisa do tipo,
mas você parou pra pensar que todo mundo naquela época usava esteroides? Ele
era bombado, mas o Barry Bonds acertou mais bolas pra fora do campo do que
qualquer um na época. O mérito de um jogador sempre deve ser comparado ao de
seus contemporâneos, os esportes e as pessoas evoluem. Mas ele trapaceou, ou seja, ele teve coragem de
fazer o que você não fez mas faria se soubesse que ninguém ia saber.
Sim, mas o Lance. Tava demorando pra chegar o mea culpa. “Mas o importante não é que
ele admitiu os erros e aceitou a culpa?” Uh, será que ele fez isso mesmo? Você
também deve ter se sentido super nobre quando admitiu um erro pro chefe ou sei
lá, mas veja bem, você não o fez na frente das câmeras (você é honesto quando
te filmam?). E putz, se você precisa de um pouco de simpatia do público, quem
melhor pra recrutar que a Oprah? Presta atenção, o Lance não tá lá pra admitir
culpa. Nos olhos dele, ele não é culpado. Taí um momento pra refletir sobre a
diferença entre culpa e vergonha. Essa entrevista não foi pra ele pedir
desculpas pro público ou sei lá como o agente dele descreveu. Essa entrevista
foi pra ele poder reconstruir a história dele ao vivo. E você acreditou.
II.
Digamos que você toma uma bomba e ganha um
monte de competição, mas no final das contas encontram provas (note que não
falei “descobrem que”) que você se dopou. Se você sente culpa, o que você faz?
Bom, espero que a garrafa de vodca não seja sua primeira escolha. Na verdade
você não faz nada, porque você vai tar se sentindo o maior dos vermes do mundo,
você não vai conseguir dormir, você vai começar a chorar no meio do banho. A
última coisa que você quer ver é o olho público. Se você já se sente péssimo
consigo mesmo, como que você vai lidar com milhões de estranhos te julgando sem
te conhecer? Mas não é tarde pra mudar. Depois de um tempo você começa a se
reabilitar. Você escreve um diário. Ajuda os vizinhos, etc... O importante é
perceber que as pessoas NUNCA vão conseguir te julgar sem viés, então foda-se
eles e vai ajudar umas crianças pobres a andar de bicicleta, blz?
Mas o Lance não sentiu culpa. Ele sentiu só
vergonha. Vergonha de ter sido pego. Vergonha de ter permitido que descobrissem
o segredo dele. Vergonha que ele não era
a pessoa que ele dizia ser. Todo mundo achava que o Lance era um cara
bacanão. Exemplo de esportista, ele venceu o câncer (sei lá, se o câncer levou
uma das bolas dele, quem é que venceu mesmo?), ele ajudou milhares de pessoas
com câncer (é, bom, não tem como verificar isso, mas você acredita que o que
falta pra cura do câncer é dinheiro, então manda brasa). Mas aí veio o doping,
e todo mundo viu que ele era fake. A sorte aqui é que ele não apelou pra boa e
velha raiva, porque isso é uma puta duma ferida narcisística. É isso que
descreve o momento que alguém ou alguma coisa estilhaça a imagem que o
narcisista criou com tanto cuidado, e se você tiver por perto, tome cuidado. A
solução: “olha, Oprah, eu não sou mais o tipo de cara que faz isso.”
III.
"Pronto, esse ângulo tá melhor." |
No Correio:
“Em seguida, Oprah
perguntou se Armstrong "viveu uma grande mentira". Em resposta, o
ciclista afirmou que "era uma história perfeita, mítica. E não era
verdadeira". "Fiz as minhas próprias decisões. Foram meus erros.
Estou aqui para pedir desculpas", disse.”
A grande mentira aqui não é a carreira dele, é
essa entrevista. Veja como ele mesmo descreve o episódio todo como uma “história
mítica”. Você até começa a acreditar que nada disso aconteceu, que aquilo tudo
foi um filme de Sessão da Tarde. Sim, Lance, não era uma história verdadeira,
mas esse lero-lero aí também não é verdadeiro não. Eu acreditaria que você tá
sendo honesto se você dissesse algo do tipo “sim, eu sei que trapacear é feio,
mas todo mundo fazia naquela época, e se eu não tomasse bomba eu sempre ia ser
um João Ninguém” – e bom, deu certo, vai demorar pra gente esquecer ele. Mas se
ele dissesse isso todo mundo ia achar ele um babaca apesar do fato que muita gente faria (e fez) exatamente a mesma coisa.
Guarda essa faca, eu não tou dizendo que ele
tem razão. Ele foi um babaca por ter se dopado. Ele devia saber que o objetivo
do esporte não é ser coroado príncipe do mundo, é fazer o mais esforço possível
dentro dos limites impostos pelo próprio esporte. A questão é que ninguém
espera que ele seja honesto. Todo mundo já decidiu que é um ladrão, um
trapaceador. E já que ninguém espera honestidade, ele não vai ser honesto,
porque seria mais um choque pra audiência. Veja bem: nada da vida do Lance é verdadeiro. Mas enquanto alguém acreditar em alguma coisa, ele vai continuar a falar.
"Em alguns momentos, ficou com lágrimas nos olhos na entrevista que deveria bater recorde de audiência nos Estados Unidos. Armstrong, porém, quis deixar claro para Oprah que não usou doping quando voltou a competir a Volta da França em 2009 e 2010. Nestas duas competições, ele não venceu, mas conquistou um terceiro lugar. Segundo ele, nos anos em que foi campeão seria impossível ter ganho sem o uso de doping."
Lágrimas de crocodilo, é claro. "Olha, tudo bem, eu fiz merda, mas eu parei de fazer merda tá, agora eu sou um cara bacana!" Aqui ele menciona que seria impossível ter ganho sem doping, ou seja, terceiro lugar é praticamente campeão mesmo, ou será que ele realmente acha que o esporte mudou completamente dois ou três anos?
O Lance também diz que quer liderar por exemplo (afinal, você ainda acredita que ele é um líder). Mas perae, exemplo de quê? Se ele quis dizer exemplo de uma geração (ou duas ou três) cuja patologia dominante é o narcisismo, então bingo, mandou bem! Ao ler o artigo, me perguntei se o Lance teve um pai alcóolatra ou bunda-mole. Surpresa! A mãe o teve aos 17, o pai biológico largou a família quando ele tinha 2 anos, ele foi adotado aos 3, e o pai adotivo divorciou a mãe quando o Lance tinha 17 anos.
"Mas eu já te falei que fui muito bem educado apesar do meu pai ter perdido a batalha contra o vício". Sim, ouvi dizer que o rum tem um baita dum gancho esquerdo. A figura do pai é importante porque é ela que vai permitir que a pessoa internalize o super-ego. O pai, basicamente, tem que ser o Capitão Nascimento* pro aspirante a gente. Se o Lance realmente tivesse tido um Pai (pra diferenciar do pai biológico, a gente ainda não conversou sobre Deus), ele teria aprendido que ele tem que ganhar não pra ser amado (sem dúvida mamãe tava lá em todas as corridas), mas porque foi um objetivo pessoal. A pessoa que vai ser considerada um bom compasso moral é aquela que age moralmente, não a que diz que é moral.
"Com todos os seus títulos retirados e banido do esporte, o ciclista insistia na mentira até a noite de segunda-feira."
Não, você que voltou a acreditar nele. É diferente.
IV.
No Tropas Estelares, o livro (faça-se um favor, compre e leia - é claro que um livro desse naipe não tem versão em português), o professor fodão fala pro protagonista imaginar um cenário (parafraseando): imagine que você tá na escola, e tem uma competição de corrida; você até que corre bem, dá umas corridinhas de vez em quando, tal, e chega em 5o lugar; aí, depois da corrida, te entregam um troféu de primeiro lugar. Você se sentiria orgulhoso do troféu? Ia tirar onda? É claro que não: você não mereceu.
"Ué, o Lance não tá tirando onda". Sim, agora que descobriram que ele é uma farsa. O que importa pro Lance não é o troféu de primeiro lugar. O que importa pra ele é que todos vejam ele como campeão (bom, agora como um santo da honestidade), não importa onde ele chega na corrida, nem se ele participou da corrida. Tanto faz se ele ganhar a corrida ou se ele faz uma entrevista com a Oprah: o que vale é que você tá olhando pra ele, e pior, validando ele.
V.Se o Lance não fosse bom de bike... |
Sabe quando você tá esperando na saída do shopping e tem um idiota que passa com o carro rebaixado e um som tão alto que você não sabe se é funk ou axé? Se você olhou pra ele e falou como ele é um filho da puta, parabéns, o Lance Armstrong ganhou.
* será que nos filmes ele conseguiu desempenhar esse papel? Ainda não vi o 2, mas em breve veremos se foi um sucesso por causa de identificação ou por causa de pensamento desejoso (é claro que a ideia de wishful thinking sequer existe no português)
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