I.
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Ah, se tivesse Facebook na 2a Guerra... |
Parte do nosso objetivo aqui é de analisar não os eventos per se, mas a maneira em que as pessoas reagem a esses eventos. Naturalmente, me senti compelido a comentar (os comentários sobre) a tragédia de Santa Maria. No entanto, Lucas Napoli o faz de maneira muito mais eloquente. Portanto, vou me limitar a, bem, comentar o comentário no comentário sobre o comentário. Se você quiser me acusar de andar em círculos, vá em frente, é um elogio.
Enfim, o que vale é que nosso amigo aí acerta na mosca, e quem sabe você dá mais credibilidade a ele porque ele é, de fato, um psicanalista. Se você não teve saco pra ler ("pô, cara, não tenho paciência pra ficar lendo desse tanto, eu sou uma pessoa trabalhadora" - eu também, mas bom), a ideia é essa: você compartilhou a imagem acima, ou algo similar, pelo mesmo motivo que você comprou a pulseira do Lance Armstrong, ou seja, porque o que vale é a imagem que você transmite. Sua mensagem de "luto" (não é à toa que a palavra é a mesma que a conjungação em primeira pessoa do verbo 'lutar') não vai consolar ninguém, do mesmo modo que sua pulseirinha não vai curar câncer nenhum (como se o câncer fosse uma doença só). Mas, em compensação, ela vai dar a dica: olha como eu me preocupo com os outros!
II.
O cara do blog é simpático demais pra jogar a real nesse/a comentador/a, mas eu não tenho tais restrições. Essencialmente, essa pessoa dá mais uma demonstração da questão que o cara tava falando. Vamos por partes:
Entendo o ponto de vista, mas não consigo concordar. Muitas pessoas ficaram realmente chocadas com essa tragédia, uma coisa que poderia ter acontecido em qualquer lugar do Brasil, qualquer boate… Poderia ser você, seus filhos, seus amigos, seus irmãos.
Hmm, tá, isso já aconteceu na Argentina, mas você não tava nem aí. Sem contar que isso não quer dizer nada, qualquer coisa "pode" acontecer em qualquer lugar a qualquer hora.
E isso choca. Minha familia por parte de mãe é toda de Santa Maria, foi onde meu irmão mais velho nasceu, foi onde eu passei minhas férias, foi onde eu fui estudar por um tempo, onde a minha irmã faz faculdade. No momento estou fazendo estagio na França e, mesmo de longe, essa tragédia me pegou em cheio.
Ah, agora começa a fazer sentido. Repare que o fato da pessoa estar na França é completamente irrelevante ao argumento dela, mas ela se sente obrigada a mencionar do mesmo jeito. Deu pra ver como o que interessa aqui não é a tragédia em si, mas é a própria pessoa que comenta? É uma questão de credibilidade: eu estudo na França, portanto eu sou inteligente, portanto você deve me ouvir. Ou seja, o que ela quer é ser vista como uma pessoa ao mesmo tempo sofisticada e compassiva. Mas isso não tem a menor importância, só o que deveria ter aqui é uma explicação de por que ela acha que o autor está errado.
Quando acordei e vi a noticia, liguei pra minha irmã e senti um alivio quando seu namorado atendeu e falou que eles estavam em casa dormindo, nem sabiam o que tinha acontecido naquela madrugada. Vi todos os meus amigos de Santa Maria desesperados atras de seus amigos, de seus vizinhos, colegas de infancia. Vi seus pais agradecendo a Deus por seus filhos não terem ido aquela boate naquela noite.
Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu...
Quem não morava em Santa Maria parou para pensar como são as boates que eu frequento e a maioria viu que poderia ser qualquer um de nós ali, mortos em 5 minutos, por não termos mais ar pra respirar, porque não conseguimos achar a saida, porque nossos olhos não conseguem mais enxergar. Talvez seja eu, não sei, mas foi dificil dormir ontem a noite, a imagem daquelas pessoas desesperadas, fico imaginando e SE… se tivesse mais uma saida, se a porta fosse maior, tivessem exaustores, janelas nos banheiros, extintores que funcionassem, se eles tivessem conseguido controlar o pânico, se abaixar como é dito pra fazer em caso de fumaça… Eu fico pensando E SE… quantas pessoas poderiam ter saido dali com vida… Também penso na dor desses pais e no trauma desses jovens sobreviventes, que se salvaram, mas tiveram que deixar amigos pra tras, que viram pessoas morrerem em seus braços, viram um mar de vidas acabadas ali, bem na sua frente.
Resumindo: a vida é um filme, e você é o personagem principal. Certamente você já reparou que conhece um monte de gente que sofre da mesma condição narcísica: "se eu tivesse estudado mais", "se os políticos não fossem corruptos", "se ela soubesse o quanto gosto dela", etc...Sim, se minha tia tivesse um pinto ela seria meu tio. Olha, tragédias acontecem toda hora. Isso foi só mais uma. Sim, foi péssimo, minhas condolências pras famílias das vítimas, etc, mas meu Deus, se eu for postar alguma coisa cada vez que alguém morrer sem ser de velhice (outra coisa que não existe, mas enfim), vou passar o dia fazendo isso. Essa tragédia em particular é cativante porque as pessoas podem se imaginar se safando, fazendo as coisas certas, salvando vidas, e tudo mais. Mas é aquela velha história: todo mundo acredita que sobreviviria ao apocalipse zumbi.
Cada pessoa no meu facebook que eu vejo prestando homenagem ou desejando condolências eu realmente acredito que, assim como eu, elas desejam paz para todas essas pessoas que morreram ou que hoje choram pela ausência de alguém querido. Eu realmente acredito que por menor que seja o seu pesar, o seu sentimento, boas energias somadas poderão aos poucos confortar essas pessoas que tanto precisam de paz.
Eu também acredito nisso, uai. Que tipo de filho da puta não desejaria paz pras vítimas e suas famílias? Quem é que fica mandando energias negativas pra que as pessoas sofram mais? A diferença é que eu não sinto necessidade de transmitir isso publicamente, porque não é o post no Facebook que vai fazer a diferença, é a intenção, que é puramente abstrata e não precisa de mais ninguém. Fica claro que a pessoa não entendeu o que o Lucas tava falando: sim, com certeza você sentiu empatia pelas vítimas e tal, mas desde quando isso quer dizer que todo mundo precisa saber (o que já é meio óbvio se você não é um psicopata)?
III.
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"Tenho certeza que ele está num lugar melhor." "Sério, por que ninguém me falou antes?! Agora posso voltar ao normal!" |
Imagine a situação: você chega em casa, e sua mãe te fala que o pai do Fulaninho morreu de cirrose/sífilis/cocada na cabeça. Vem aquela sensação péssima: putz, que terrível, não consigo nem imaginar isso acontecendo comigo, queria poder ajudar o Fulaninho. E você pode, mas não da maneira que você pensa.
Agora é o funeral. Todos tristes, ninguém sabe muito bem o que dizer, rola empatia mas rola um certo desconforto também. Nunca te ensinaram como se comportar em tal situação, e seu avô morreu quando você tinha 5 anos, então você nem se lembra como é direito. Você se sente super mal e quer ajudar, mas não sabe direito como. Nesse momento, você avista o Fulaninho sozinho, chorando. Como você não tem ideia de como agir, você se volta ao que você conhece: filmes, desenhos, etc.
Nos filmes as pessoas sempre vão fazer alguma coisa pela pessoa que sofre, algo que as faz sentir melhor. Mas acho melhor já estourar sua bolha aqui: nada, absolutamente nada que você disser vai fazer ela se sentir melhor. Que isso fique bem claro: se alguém perder uma pessoa próxima e não se sentir triste, algo está errado. Isso é a resposta natural e necessária a qualquer perda do tipo (por exemplo, um término: quando sua namorada terminou com você, você nada mais sentiu do que luto pelo relacionamento). Só que você não sabe lidar com o sofrimento alheio, porque seus pais passaram toda sua infância tentando fingir que o sofrimento não existe ou que ele pode ser evitado ou prevenido.
Acho que a essa altura do campeonato a vida já deve ter te ensinado que a coisa não funciona bem assim. Mas pensa bem: alguém conseguiu acabar com aquele aperto no coração? Não. Mas você acha que tem que dizer alguma coisa pro Fulaninho, que você é um escroto se não for lá e der seus conselhos amadores e gestos semi-automáticos. É isso que uma Pessoa Que Liga faz, e você é uma Pessoa Que Liga. A realidade que não há nada, de fato, que você possa fazer, é mascarada para tentar evitar um sentimento pior que o sofirmento-por-empatia: a falta de poder. O que te dá agonia não é a morte do pai, nem as lágrimas do Fulaninho: é que não há nada que você possa fazer, e isso vai ao contrário do que te foi dito pelos seus pais, professores, tios, e tal.
Qual é a resposta apropriada então? "Fulaninho, sinto muito por sua perda. Se você precisar de qualquer coisa, não hesite em me ligar." Ponto. Final. O sofrimento da pessoa é da pessoa. É ela que sente, é ela que tem que lidar com isso. Isso não quer dizer que você a deva rejeitar: se ela quiser falar com você, chorar no seu ombro, você cancela seus compromissos do dia. Também não quer dizer que você não deve ficar preocupado se o Fulaninho ainda tiver remoendo a morte depois de 3 anos. Mas além disso, não há nada a se fazer a não ser dar tempo ao tempo.
IV.
Pra fechar, vale voltar àquela palavra "luto". Às vezes vale dar uma olhada mais concentrada num conceito pra entendê-lo melhor. Aqui vai uma definição:
s.m. Profundo pesar causado pela morte de alguém.
Ou seja: o luto é um sentimento, uma coisa particular, que só quem sente vai saber como é. Quando ocorre uma morte à sua volta (e Santa Maria é bem longe, se liga), seu reflexo é de querer ajudar de alguma maneira, e não há nada de errado com isso. Mas por favor, se você quer ajudar, vai fazer uma doação, faça uma prece, um pentagrama, sei lá. São coisas que realmente podem trazer um ganho qualitativo, se não pras vítimas, pra possíveis futuras vítimas ("Mas prece não traz ganho qualitativo!" Ah é, você é perito em religião por ser ateu, foi mal). O que não faz diferença nenhuma é postar no Facebook que você se sente mal pela tragédia, ou falar pro Fulaninho que vai ficar tudo bem, que o pai dele era ótimo.
Não posso saber o que você sente de fato ou não, portanto não posso te julgar com base nisso. Mas sentimentos são, ahn, sentidos, e se você sente (ahá) necessidade de transmitir ao público o que você tá sentindo sem que o público tenha pedido, talvez você seja um narcisista.
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