I.
"Espelho, espelho meu, quem sou eu?" |
...não, isso não funciona. O estudo é pura prestidigitação (o que palhaços como David Blaine e Criss Angel fazem). Primeiro, o estudo foi realizado nos Estados Unidos. Talvez você nunca tenha ido aos Estados Unidos, mas deve ter uma noção que você foi criado com valores diferentes que o Jimmy. Agora imagine como deve ser diferente pra Yuhiko ou pro Vijay. Certamente foi diferente pro seu vô, e mais ainda pro vô do seu vô. Ou seja: esses estudos não são universais, como eles querem que você acredite, mas puramente específicos de uma geração de uma zona geográfica/cultural. Se você deixou de pensar no que define o "ser humano universal", eu te perdoo, isso não existe, é um beco sem saída filosófico. Sim, tem arquétipos, mas num nível que está além da nossa existência. Não há arquétipos de carne e osso.
Mas mesmo que fosse feito com gente do mundo todo:
"Após estudar 86 crianças, os cientistas concluíram que..."
Se você leu o final da frase, game over, cara. Um estudo de 86 pessoas não diz nada, a não ser que você conheça essas pessoas. Mesmo se o estudo fosse realmente representativo, ele foi feito nos Estados Unidos e você tá lendo no Brasil. Mas sério, 86 pessoas? Posso pegar 86 pessoas aleatórias no meu Facebook e fazer um estudo com elas, mas eu saberia que ele já teria um viés enorme. Tudo bem, quanto mais gente mais a gente pode falar de verdades (lembre-se, não de Verdade), mas se você tá chegando a conclusões (e ponto final!) com 0,0000000287% da população, talvez você seja um narcisista.
Mas antes de você começar a zoar o cientista, pare pra pensar sobre o fato que é basicamente isso que você lê o tempo todo. O jornal pega um estudo que representa a mensagem que quer transmitir e publica um artigo. Perae, quem disse que o artigo sequer está de acordo com as conclusões do(s) próprio(s) cientista(s)? Uma rápida procura por informações adicionais nos dá esse pequeno dado:
"O estudo não estudou mães solteiras diretamente, e todas as famílias incluíam dois pais."
Isso não contradiz diretamente o título do Correio? "Ausência do pai ou da mãe não compromete o desenvolvimento dos filhos". Ou seja, eles chegaram à conclusão que o fator X tem um efeito Y nas pessoas, sendo que o estudo não considerou nenhum caso X! O jornal, em outras palavras, não quer que você saiba a Verdade: ele quer vender propaganda. E você, ainda pega suas informações com a mídia? Espero que seu filho não seja preso tentando comprar maconha na favela.
II.
Mas, se o cara que escreveu esse artigo (quer dizer, mais provável que tenha sido uma mulher, mas perae, pra que essa raiva? Se você chegar à conclusão que eu sou machista, você não tá lendo o blog certo) tem as bolas de dizer o contrário do que diz o estudo (enviesado e parcial), quer dizer que você tá lendo e acreditando. Por que que ele/a achou que você ia ler isso?
Dá uma olhadinha no começo da matéria. Ele fala sobre três mulheres de idades e situações diferentes, mulheres como você, que têm filho e o cafajeste do marido caiu fora. Mas o que, pelamordedeus, o que que essas mulheres têm a ver com você? "Uma delas é jovem, loira com luzes, que nem eu!" Tá, mas ela tem a mesma religião que você? Veio do mesmo estado? Tem o mesmo emprego? Gosta das mesmas coisas? Claro que não. Essas mulheres tão aí pra você se sentir próximo, pra você se identificar. Por que que um jornal, que supostamente deveria apresentar as notícias objetivamente, tá falando de casos particulares? Pra te dar impressão que o que eles vão falar pode afetar a vida da mulher comum. Ah, por falar nisso, as Casas Bahia tão com uma promoção imperdível!
"Tá, eu sei por que o jornal publicou, mas por que eu tou lendo?" Ora, porque você se sente melhor. Se o seu marido te largou pela secretário, se você não lembra pra quem deu na saída da boate, o Correio tá aqui pra te resgatar e te dizer "não, shh, vai ficar tudo bem, você é forte, você pode..." Eu espero que já tenha ficado claro aqui que os dois pais são essenciais. Sim, você tá pegando a coisa, figuras paterna e materna. Ou seja, sim, é possível criar filhos de boa sem o pai ou sem a mãe, mas você tem que ver que é bem mais fácil quando tem um homem e uma mulher* com a idade certa por perto.
O que a matéria quer que você acredite é que sua situação é não só normal mas "saudável". Ela tá te reassegurando, passando a mão na sua cabeça. Mas não se esqueça que sua mãe também te diria que "vai ficar tudo bem" se você descobrir que tem câncer ou se o seu pai saiu de casa, isso não quer dizer que é verdade. O leitor da matéria, no final das contas, provavelmente não teve pai (presente, eficiente): se você engravida aos 17, sua mãe vai te dizer que tá tudo bem, seu pai vai te dizer que, porra, se prepara, vai ter que pagar o preço da sua irresponsabilidade. Só que seu reflexo é de ler e acreditar na matéria. Ponto pras Casas Bahia.
III.
Por um lado, isso não quer dizer que os repórteres e editores e tal do jornal estejam fazendo isso conscientemente (mas pode ter certeza que alguns tão ligados), mas por outro, eles sabem exatamente o que estão fazendo. Eles sabem que você nunca vai tentar achar o estudo per se, se é que existe. Eles sabem o que faz você clicar nos links e comprar os jornais/revistas**. Tudo que eles precisam fazer é justificar sua existência.
Voltando ao cenário anterior: você engravidou aos 17. Hoje tá com 20. Você tá tomando café da manhã, e dá uma olhada na edição do Correio que sua mãe ainda assina, tomando seu café no copo de requeijão. De repente, você se depara com uma notícia sobre um estudo americano (se você falar "estadunidense", por favor, vá embora) que diz que pais solteiros podem ter filhos saudáveis (bem, não exatamente, mas é isso que você lê). De repente, não é tão ruim assim que o Jorge trocou você por aquela vadia. O jornal basicamente diz Mães Solteiras = Fodonas. E isso só reforça sua identidade.
Agora, você pode chegar pra sua amiga e falar "um estudo lá diz que filhos não precisam de pai pra ser saudáveis***, meu filho não precisa daquele escrotinho do Jorge". Sua amiga vai entender você, ela sabe que você é forte e que seu filho vai ser alguém na vida (mas será que ele vai saber quem?). Resultado: você se preocupa ainda menos com a função paterna, e num piscar de olhos seu filho tá dirigindo loucasso e destruindo o carro "que ainda faltam 16 prestações".
Presta bem atenção: essa matéria não traz nenhuma informação útil ao leitor. Ela não ensina mães solteiras a desempenhar bem as funções paterna e materna. Ela não diz como a família da mãe solteira pode ajudar a compensar a falta do pai (só que ela pode). Ela não diz como um viúvo pode encarar a situação. É tudo um grande monte de nada, que em vez de gerar uma conversa produtiva, gera renda pra megaempresas e dívida pra você ("porra, mas tava em 8 vezes sem júros, como que eu não ia comprar?"). Aliás, não é bem um nada. É um espelho, só que não é um espelho real, "verrugas e tudo mais", não, é o espelho do Harry Potter, e o que você mais deseja é uma identidade.
IV.
Mas assim, não esqueça, uma identidade não é algo que você descobre. Não é algo que te é explicado nos jornais (e nem nos blogs). Não é algo que se escolhe de um leque infinito. É algo que se vive. A sua identidade é determinada pelas suas ações, não por estudos realizados numa cultura diferente. É o que você faz que conta. Infelizmente, esse tipo de matéria só serve pra reforçar a ideia que a única coisa que você pode fazer que faz uma diferença é compras.
Meu objetivo aqui não é demonisar os coitados dos repórteres não. Não duvido nada que eles acham que estão fazendo um bom trabalho, algo produtivo. A questão é que, não, que isso fique BEM claro, não é legal não ter pai. Sim, certamente a maioria das pessoas não fica bitolada, nem precisa de remédio de tarja preta, mas daqui a pouco você tá achando que é até melhor não ter pai (afinal, homem é tudo cafajeste, né) e seu filho te odeia e você não sabe o que fazer, mas tudo bem, ele é "saudável".
"O novo diretor da revista gosta de trazer o bichano pro escritório" |
Por um lado, isso não quer dizer que os repórteres e editores e tal do jornal estejam fazendo isso conscientemente (mas pode ter certeza que alguns tão ligados), mas por outro, eles sabem exatamente o que estão fazendo. Eles sabem que você nunca vai tentar achar o estudo per se, se é que existe. Eles sabem o que faz você clicar nos links e comprar os jornais/revistas**. Tudo que eles precisam fazer é justificar sua existência.
Voltando ao cenário anterior: você engravidou aos 17. Hoje tá com 20. Você tá tomando café da manhã, e dá uma olhada na edição do Correio que sua mãe ainda assina, tomando seu café no copo de requeijão. De repente, você se depara com uma notícia sobre um estudo americano (se você falar "estadunidense", por favor, vá embora) que diz que pais solteiros podem ter filhos saudáveis (bem, não exatamente, mas é isso que você lê). De repente, não é tão ruim assim que o Jorge trocou você por aquela vadia. O jornal basicamente diz Mães Solteiras = Fodonas. E isso só reforça sua identidade.
Agora, você pode chegar pra sua amiga e falar "um estudo lá diz que filhos não precisam de pai pra ser saudáveis***, meu filho não precisa daquele escrotinho do Jorge". Sua amiga vai entender você, ela sabe que você é forte e que seu filho vai ser alguém na vida (mas será que ele vai saber quem?). Resultado: você se preocupa ainda menos com a função paterna, e num piscar de olhos seu filho tá dirigindo loucasso e destruindo o carro "que ainda faltam 16 prestações".
Presta bem atenção: essa matéria não traz nenhuma informação útil ao leitor. Ela não ensina mães solteiras a desempenhar bem as funções paterna e materna. Ela não diz como a família da mãe solteira pode ajudar a compensar a falta do pai (só que ela pode). Ela não diz como um viúvo pode encarar a situação. É tudo um grande monte de nada, que em vez de gerar uma conversa produtiva, gera renda pra megaempresas e dívida pra você ("porra, mas tava em 8 vezes sem júros, como que eu não ia comprar?"). Aliás, não é bem um nada. É um espelho, só que não é um espelho real, "verrugas e tudo mais", não, é o espelho do Harry Potter, e o que você mais deseja é uma identidade.
IV.
Mas assim, não esqueça, uma identidade não é algo que você descobre. Não é algo que te é explicado nos jornais (e nem nos blogs). Não é algo que se escolhe de um leque infinito. É algo que se vive. A sua identidade é determinada pelas suas ações, não por estudos realizados numa cultura diferente. É o que você faz que conta. Infelizmente, esse tipo de matéria só serve pra reforçar a ideia que a única coisa que você pode fazer que faz uma diferença é compras.
Meu objetivo aqui não é demonisar os coitados dos repórteres não. Não duvido nada que eles acham que estão fazendo um bom trabalho, algo produtivo. A questão é que, não, que isso fique BEM claro, não é legal não ter pai. Sim, certamente a maioria das pessoas não fica bitolada, nem precisa de remédio de tarja preta, mas daqui a pouco você tá achando que é até melhor não ter pai (afinal, homem é tudo cafajeste, né) e seu filho te odeia e você não sabe o que fazer, mas tudo bem, ele é "saudável".
* sim, os gays também podem ser pais, calma, não é a situação ideal mas é certamente melhor que o 3/4 de mãe e 1/5 de pai da classe média comum
** "pô, mas tu não vai falar logo da Veja?" 1. você não lê mais Veja 2. eu me sentiria um hipster curtindo música sertaneja
** "pô, mas tu não vai falar logo da Veja?" 1. você não lê mais Veja 2. eu me sentiria um hipster curtindo música sertaneja
*** já sabe como funciona o telefone sem fio, né?
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